Olá, pessoal!
Em fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.276.977, afetado como Tema 1102 da Repercussão Geral.
A tese em debate, conhecida como “revisão da vida toda”, busca esclarecer o seguinte ponto:
Possibilidade de revisão de benefício previdenciário mediante a aplicação da regra definitiva do artigo 29, incisos I e II, da Lei nº 8.213/91, quando mais favorável do que a regra de transição contida no artigo 3º da Lei nº 9.876/99, aos segurados que ingressaram no Regime Geral de Previdência Social antes da publicação da referida Lei nº 9.876/99, ocorrida em 26/11/99.
O tema é recente e afeta a vida de milhares de segurados, razão pela qual merece uma atenção especial.
Toda a discussão gira em torno da sistemática de cálculo aplicável a benefícios previdenciários. A matéria é árida e tem muitos detalhes, mas vou simplificar para facilitar o entendimento.
Se levarmos em conta apenas o período posterior à lei n. 8.213/91, temos quatro momentos que merecem ser considerados:
Essa primeira fase começa com a publicação da lei n. 8.213/91 e vai até o advento da lei n. 9.876/99.
Nesse período, o cálculo do benefício levava em conta apenas as 36 últimas contribuições vertidas pelo segurado, computadas em período não superior aos 48 meses que antecedem a aposentadoria. É isso o que afirmava a redação original do art. 29 da 8.213/91:
Art. 29. O salário-de-benefício consiste na média aritmética simples de todos os últimos salários-de-contribuição dos meses imediatamente anteriores ao do afastamento da atividade ou da data da entrada do requerimento, até o máximo de 36 (trinta e seis), apurados em período não superior a 48(quarenta e oito) meses.
Em muitos casos, esse cálculo beneficiava o segurado puxando a média para cima, por considerar apenas os salários recebidos no final da carreira.
A sistemática acima somente foi alterada com a edição da lei n. 9.876, publicada em 26-11-1999. Essa lei alterou a lei n. 8.213/91 trazendo uma nova regra “permanente” que aplicava o fator previdenciário ao cálculo de alguns benefícios.
A lei n. 9.876/99 também criou uma regra de transição para beneficiar as pessoas que já estavam filiadas ao RGPS anteriormente. É justamente sobre essas pessoas, que se filiaram antes de novembro/1999, que falaremos agora.
O art. 3º da 9.876/99 dispõe o seguinte:
Art. 3º Para o segurado filiado à Previdência Social até o dia anterior à data de publicação desta Lei, que vier a cumprir as condições exigidas para a concessão dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, no cálculo do salário-de-benefício será considerada a média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição, correspondentes a, no mínimo, oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994, observado o disposto nos incisos I e II do caput do art. 29 da Lei no 8.213, de 1991, com a redação dada por esta Lei.
(…)
§ 2º No caso das aposentadorias de que tratam as alíneas b, c e d do inciso I do art. 18, o divisor considerado no cálculo da média a que se refere o caput e o § 1º não poderá ser inferior a sessenta por cento do período decorrido da competência julho de 1994 até a data de início do benefício, limitado a cem por cento de todo o período contributivo.
A lei n. 9.876/99 permite que as pessoas que já estavam filiadas ao RGPS antes de 26-11-1999 tenham seus benefícios calculados SEM a incidência do fator previdenciário. E mais: o salário-de-benefício seria a média aritmética das 80% maiores contribuições de todo o período contributivo posterior ao Plano Real, com a aplicação de um divisor mínimo.
Essa regra de transição é pior que a sistemática anterior (últimas 36 contribuições), mas permite que o indivíduo escape do fator previdenciário, que costuma reduzir o valor dos benefícios.
Por que a existência de um divisor mínimo? Para evitar que segurados manipulassem o valor do próprio benefício. Ciente de que os períodos anteriores a julho/94 seriam desconsiderados, algumas pessoas que estavam perto de se aposentar poderiam fazer algumas poucas contribuições (com valores elevados) para puxar o valor do benefício para cima. O divisor mínimo evita essa malandragem.
Pela literalidade da lei, quem se filiou ao RGPS após novembro/1999 não poderia utilizar essa regra, caindo necessariamente no cálculo da redação “permanente” da lei n. 8.213/91.
Ao limitar o cálculo ao período posterior ao Plano Real, o governo evita incontáveis discussões a respeito dos índices inflacionários relativas à UFIR, Cruzado, Cruzeiro, Cruzado Novo, etc. No entanto, isso pode prejudicar o trabalhador que teve contribuições altas justamente no período pré-1994, ignorado pela regra de transição.
Quem ingressou no RGPS após a lei n. 9.876/99 teve seus benefícios calculados de acordo com o art. 29 da lei n. 8.213/91, na redação dada pela própria 9.876/99:
Art. 29. O salário-de-benefício consiste: (Redação dada pela Lei n. 9.876, de 26.11.99)
I – para os benefícios de que tratam as alíneas b e c do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário; (Incluído pela Lei n. 9.876, de 26.11.99)
II – para os benefícios de que tratam as alíneas a, d, e e h do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo. (Incluído pela Lei n. 9.876, de 26.11.99)
Os benefícios mencionados no inciso I são a aposentadoria por idade e a aposentadoria por tempo de contribuição.
Os do inciso II são a aposentadoria por invalidez, a aposentadoria especial, o auxílio-doença e o auxílio-acidente.
Portanto, para quem se filiou ao RGPS após a lei n. 9.876/99, os benefícios seriam calculados a partir da média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo. A aposentadoria por idade e a aposentadoria por tempo de contribuição sofreriam a incidência do fator previdenciário.
A Emenda Constitucional n. 103, de novembro de 2019, não revogou expressamente qualquer dispositivo da lei n. 8.213/91. No entanto, tornou algumas regras incompatíveis com a nova sistemática constitucional.
Isso aconteceu com o cálculo do salário-de-benefício, como vemos no art. 26 da EC 103/19:
Art. 26. Até que lei discipline o cálculo dos benefícios do regime próprio de previdência social da União e do Regime Geral de Previdência Social, será utilizada a média aritmética simples dos salários de contribuição e das remunerações adotados como base para contribuições a regime próprio de previdência social e ao Regime Geral de Previdência Social, ou como base para contribuições decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal, atualizados monetariamente, correspondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência.
Perceba que o fator previdenciário deixou de ser aplicado às aposentadorias urbanas. Nesse aspecto, a EC 103/19 se assemelha à regra de transição aplicável aos indivíduos que já estavam filiados antes da lei n. 9.876/99.
No entanto, existe uma diferença notável: os segurados filiados antes da lei n. 9.876/99 tinham o benefício calculado a partir da média das 80% maiores contribuições. Com a EC 103/19, essa colher-de-chá não existe: serão computadas todas as contribuições recolhidas ao longo da vida (pós-Plano Real), mesmo aquelas pequenas que você fez assim que começou a trabalhar.
No STJ, a matéria foi apreciada como tema 999 dos REsp Repetitivos. Em dezembro de 2019, aquele tribunal fixou a seguinte tese:
Aplica-se a regra definitiva prevista no art. 29, I e II da Lei 8.213/1991, na apuração do salário de benefício, quando mais favorável do que a regra de transição contida no art. 3º da Lei 9.876/1999, aos Segurado que ingressaram no Regime Geral da Previdência Social até o dia anterior à publicação da Lei 9.876/1999.
O critério adotado, aqui, foi a filiação ao regime. O STJ incluiu todo os segurados que ingressaram antes da lei n. 9.876/99.
Apesar da amplitude do conceito, a utilidade prática limita-se aos segurados que se filiaram antes da lei n. 9.876/99 e que implementaram as condições para o benefício após a lei n. 9.876/99.
Em suma, o STJ afirma que a regra “definitiva” (sem divisor mínimo e com fator previdenciário) pode ser utilizada pelos segurados que já estavam filiados antes da lei n. 9.876/99, caso lhes seja mais favorável.
E aqui está o “pulo-do-gato”: a regra “definitiva” não limita o período contributivo ao tempo trabalhado após o Plano Real (julho de 1994). Ela inclui, em tese, a vida toda do segurado.
Isso se explica: a regra “definitiva” foi criada para ser utilizada apenas pelos segurados que se filiaram ao regime após a publicação da lei n. 9.876/99. Como a lei n. 9.876 é de 1999, o segurado certamente não teria contribuições anteriores ao Plano Real (que é de 1994).
Por isso, o art. 29 da lei n. 8.213/91 (com a redação da lei n. 9.876/99) utiliza a média contributiva correspondente aos 80% maiores salários da vida toda do segurado (incidindo, em alguns casos, o fator previdenciário).
A posição defendida pelo INSS no curso do processo judicial me parece adequada: na hipótese de a regra “definitiva” ser aplicada aos segurados que ingressaram antes de 1999, o período contributivo deveria se limitar apenas ao período posterior a julho de 1994, como ocorre na regra do art. 3º da própria lei n. 9.876/99.
Todavia, o STJ não fez esse recorte. Definiu que a norma criada para os filiados pós-1999 seria aplicável também aos filiados anteriormente, admitindo o cálculo com base nas contribuições da vida toda.
Em fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da matéria como Tema 1102 da repercussão geral.
Computados os votos, tudo indicava que o INSS sofreria nova derrota. Os sites e perfis de advogados em redes sociais chegaram a divulgar a tese fixada pelo STF:
O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da lei 9.876, de 26/11/1999, e antes da vigência das novas regras constitucionais introduzidas pela EC 103/2019, que tornou a regra transitória definitiva, tem o direito de optar pela regra definitiva, acaso esta lhe seja mais favorável.
O STF aplicava, em síntese, a mesma linha do STJ.
Acontece que, antes de declarar o resultado do julgamento pelo Plenário Virtual, o STF retirou o feito de pauta. O motivo é que um dos ministros favoráveis (justamente o relator, Marco Aurélio) está aposentado e não poderia ter tido seu voto computado.
Ainda não há previsão de nova data para o julgamento, mas é possível que o resultado seja revertido em favor do INSS.
A decisão do STJ não transitou em julgado. O tema aguarda apreciação pelo Supremo.
Caso prevaleça, a revisão da vida toda afetará apenas os trabalhadores que se filiaram ao RGPS antes de 28-11-1999 e que tiveram benefícios concedidos com base em fatos ocorridos até 13-11-2019 (data da publicação da EC 103/19).
A limitação mencionada acima ocorre porque a EC 103/19 novamente alterou a forma de cálculo dos benefícios. Para fatos ocorridos a partir de 13-11-2019, o cálculo segue a sistemática do art. 26 da EC 103/19 – superando a discussão travada no judiciário.
Vale notar que a aplicação de uma regra de cálculo não é, intrinsecamente, favorável ou prejudicial ao segurado. Faz-se necessária a análise das contribuições vertidas em cada caso específico, principalmente se levarmos em conta que a regra “definitiva” (art. 29 da lei n. 8.213/91, com redação dada pela lei n. 9.876/99) determina a aplicação do fator previdenciário no cálculo das aposentadorias por idade e por tempo de contribuição.
A idade do segurado na data da aposentadoria também é importante, pois isso afeta muito na aplicação do fator previdenciário.
Em tese, essa revisão pode vir a beneficiar indivíduos que tiveram valores de contribuição mais altos no período anterior a julho de 1994, que foram desconsiderados pelo cálculo do art. 3º da lei n. 9.876/99 (regra de transição). Se os salário-de-contribuição fossem pequenos, de nada adiantará incluí-los no cálculo.
Se as causas forem mal instruídas, o ajuizamento da ação poderá resultar em execução nula ou até mesmo desfavorável para o segurado, com redução no valor do benefício.
Outra limitação prática é a decadência prevista no art. 103 da lei n. 8.213/91. Caso tenham decorrido mais de 10 anos desde a implantação do benefício, não será possível rever o ato concessório.
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Ver comentários
Eu li q o INSS entrou no dia 16/03/2020 com recurso no STF sobre a revisão da vida toda, vc sabe como anda ?
A PGR recorreu da sentença, ao STF. A partir de então, não consigo acessar informações acerca do assunto. Onde posso encontrá-las para me manter atualizado?