Qual o limite temporal para o oferecimento de acordo de não persecução penal?
Permitam-me atalhar o caminho, dispensando maiores considerações em relação ao instituto em si, para ir direto ao ponto!
O acordo de não persecução foi inserido no Código de Processo Penal, artigo 28-A, por força da Lei 13.964/2019, o tão falado Pacote Anticrime, que sepultou uma antiga discussão em torno da constitucionalidade do instituto, que já existia no cenário brasileiro, com previsão na Resolução 181, do CNMP, de 2017.
O aludido ato normativo, a Resolução 181, do CNMP, já havia contemplado o acordo na ordem jurídica pátria – entretanto por ato diverso de lei – e vinha sendo aplicado Brasil afora.
A reforma introduzida pelo Pacote alterou alguns dispositivos da Resolução, mantendo os principais aspectos do acordo. Deixou, entretanto, de esclarecer pontos importantes, cuja solução certamente será apresentada pela doutrina e pela jurisprudência com o decorrer do tempo.
Tratando-se de tema novo, que altera substancialmente o cenário da justiça criminal, que passa a adotar um modelo consensuado em substituição ao full trial, a sua incidência em concurso público é uma grande aposta para os próximos certames!
Um dos pontos que poderia ter sido disciplinado pelo legislador, mas infelizmente não foi, é o prazo fatal para oferecimento do benefício.
À vista do silêncio do legislador, o Grupo Nacional de Coordenadores dos Centros de Apoio Criminais, do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais editou o enunciado 20, estabelecendo que “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.”
É uma das possíveis orientações, que embora não tenha caráter vinculante, fornece uma diretriz, capaz de uniformizar a atuação dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário em todo o Brasil, até que os tribunais brasileiros sejam desafiados a enfrentar o tema, sedimentando um posicionamento.
Em que pese a autoridade emanada do pronunciamento do Grupo, essa não parece ser, com o devido respeito e acatamento, a melhor solução. E para se chegar a essa conclusão, necessário a análise da natureza jurídica da norma em questão, artigo 28-A, do Código (ou mesmo do artigo 18, da Resolução).
Estando a norma inserta no Código de Processo Penal e disciplinando ela questões atinentes à persecução penal, não se pode negar que ela tem natureza processual.
Não se pode olvidar, por outro lado, que a norma em questão trata do jus puniendi e como tal há que ser reputada lei penal, e mais: lex mitior.
A sua aplicação evita a formação de eventual título executivo judicial, consistente na sentença penal condenatória, com todas as consequências daí advindas. O §13, do artigo 28-A, consigna nova causa de extinção da punibilidade para o caso de cumprimento integral do acordo.
Com isso, o investigado margeia entre ser ou não condenado, manter a condição da primariedade, sofrer os incontáveis e deletérios efeitos primários e secundários da sentença. Inegável, nessa perspectiva, as consequências penais do acordo, e, assim, que ele tem natureza (também) penal.
Assis Toledo (1994, p. 35-36), ao tratar da lei penal mais benigna traz os seguintes critérios:
Pode-se, entretanto, afirmar que, de um modo geral, salvo excepcional demonstração em contrário, reputa-se mais benigna a lei na qual: (…) d) se estabelecerem novas causas extintivas da punibilidade ou se ampliarem as hipóteses de incidência das já existentes, notadamente quando são reduzidos prazos de decadência, de prescrição, ou se estabelece modo mais favorável de contagem desses prazos; e) se extinguirem medidas de segurança, penas acessórias ou efeitos da condenação;
A situação relativa ao acordo de não persecução amolda-se, pois, às alíneas d e e supra, sendo classificada em seu aspecto penal, como lex mitior.
Uma interpretação gramatical da norma poderia conduzir à conclusão de que o instituto somente seria aplicável, de fato, antes do oferecimento da denúncia, que seria, assim, o marco final ao oferecimento da proposta.
Isto porque, acaso iniciada a persecução, nas haveria que se falar em não-persecução. É intuitivo.
Ocorre que o termo persecução é bem mais amplo, abrangendo tanto a fase extrajudicial, quanto a fase judicial.
Aliás, a persecução se inicia quando da prática criminosa, ocasião em que surge ao Estado, como regra, o poder-dever de investigar, processar e julgar as infrações, com a formação do título executivo, cumprindo, destarte, a missão entregue ao Direito Penal.
E essa persecução somente se encerra quando do trânsito em julgado da decisão, enquanto sobreviver a pretensão punitiva estatal (sucedida pela pretensão executória).
Daí o equívoco de se adotar um conceito restritivo e simplista do termo persecução penal, cingindo-a à persecução extrajudicial ou pré-processual.
Uma interpretação sistemática também poderia conduzir a um conclusão equivocada. Isto por conta da posição topológica do dispositivo: artigo 28-A, logo após tratar do inquérito policial e antes de adentrar o tema da ação penal.
Assim, estando nesse limiar entre a investigação e a ação penal, o acordo restringir-se-ia às hipóteses em que a denúncia ainda não houvesse sido ofertada.
A interpretação teleológica, entretanto, propõe outra alternativa. Analisando os ares que inspiraram a edição da Resolução 181 (e obviamente o Pacote Anticrime), notadamente as deficiências estruturais da justiça criminal, há que se consignar que os acordos devem ser oferecidos inclusive a processos em curso.
Maximiliano (2017, p. 151), ao tratar dessa modalidade de interpretação assevera que:
Levam-se em conta os esforços empregados para atingir determinado escopo, e inspirados pelos desígnios, anelos e receios que agitavam o país, ou o mundo, quando a norma surgiu. O fim inspirou o dispositivo; deve, por isso mesmo, também servir para lhe limitar o conteúdo; retifica e completa os caracteres na hipótese legal e auxilia a precisar quais as espécies que na mesma se enquadram. Fixa o alcance, a possibilidade prática; pois impera a presunção de que o legislador haja pretendido editar um meio razoável, e, entre os meios possíveis, escolhido o mais simples, adequado eficaz.
Em relação à aplicação intertemporal da suspensão condicional do processo, o Supremo Tribunal Federal, ainda nos idos do ano de 1996, proferiu julgado que serviu de referência ao trato da matéria e pode, mutatis mutandis, servir ao caso do acordo. Ele se encontra assim ementado (HC 74305/SP):
“HABEAS CORPUS”. Suspensão condicional do processo penal (art. 89 da Lei 9.099/95). Lex mitior. Âmbito de aplicação retroativa. – Os limites da aplicação retroativa da “lex mitior”, vão além da mera impossibilidade material de sua aplicação ao passado, pois ocorrem, também, ou quando a lei posterior, malgrado retroativa, não tem mais como incidir, à falta de correspondência entre a anterior situação do fato e a hipótese normativa a que subordinada a sua aplicação, ou quando a situação de fato no momento em que essa lei entra em vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e, portanto, com a finalidade para a qual foi instituído. – Se já foi protalada sentença condenatória, ainda que não transitada em julgado, antes da entrada em vigor da Lei 9.099/95, não pode ser essa transação processual aplicada retroativamente, porque a situação em que, nesse momento, se encontra o processo penal já não mais condiz com a finalidade para a qual o benefício foi instituído, benefício esse que, se aplicado retroativamente, nesse momento, teria, até, sua natureza jurídica modificada para a de verdadeira transação penal. “Habeas corpus” indeferido.
O Sodalício sedimentou o entendimento no sentido de que a prolação da sentença, ainda que não haja transito em julgado, seria o marco ao oferecimento da benesse, ao argumento de que a suspensão proposta não condiz com o estágio avançado do processo (com sentença já prolatada).
O então Ministro Moreira Alves, relator, sustentou em seu voto, que o limite à retroatividade da lei penal é a própria natureza do instituto, não havendo que se falar em suspensão de um processo já findo, verbis:
A meu ver, os limites da aplicação retroativa da “lex mitior” vão além da mera impossibilidade material de sua aplicação ao passado, pois ocorrem, também, ou quando a lei posterior, malgrado retroativa, não tem mais como incidir, à falta de correspondência entre a anterior situação do fato e a hipótese normativa a que subordinada a sua aplicação, ou quando a situação de fato no momento em que essa lei entra em vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e, portanto, com a finalidade para a qual foi instituído.
Segundo o posicionamento à época formado, deveria sim haver retroatividade, desde que compatível com a natureza do instituto, raciocínio perfeitamente aplicável ao caso vertente, afinal, como já dito, a persecução penal há que ser compreendida como o período que vai desde a prática do delito até a formação de um título executivo judicial: a sentença penal condenatória com trânsito em julgado.
GRINOVER, GOMES FILHO e FERNANDES sublinham que as medidas despenalizadoras da lei tem “natureza inclusive (ou predominantemente) penal (…): todas são mais benéficas, comparando-se com o sistema penal anteriormente vigente. Estamos diante de novatio legis favorável”. (p. 47). Destacam entretanto que há um limite à retroatividade: “os casos já julgados definitivamente (é dizer, com trânsito em julgado) não serão, obviamente, ressuscitados”. (GRINOVER, GOMES FILHO e FERNANDES, 2002, p. 47 e p. 49)
Essa orientação deve ser aplicada analogicamente ao acordo de não persecução, afinal “a analogia como argumento a maiori ad minus significa que a norma jurídica válida para uma classe geral de fatos é igualmente válida para fatos especiais da mesma categoria” (SANTOS, 2012, p. 62-63).
O Ministério Público Federal editou Orientação Conjunta tombada sob o n. 03, de 2018, revisada e ampliada a partir da edição da Lei 13.964/2019, sublinhando a possibilidade de “(…) oferecimento de acordos de não persecução penal no curso da ação penal, podendo ser dispensada, nessa hipótese, a instauração de PA, caso a negociação seja realizada nos próprios autos do processo.”
Embora tenha admitido o oferecimento de acordo para as ações em curso, não fixou o termo a quo para a sua apresentação.
O STJ, entretanto, parece se inclinar no sentido de acatar a orientação emanada do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, como se vê no julgamento da PET no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1668089 – SP (2020/0041787-8) e do HABEAS CORPUS Nº 584.344 – SC (2020/0123851-0), de relatoria dos Ministros Felix Fischer e Laurita Vaz, respectivamente, ambas de junho de 2020.
Em resumo teríamos o seguinte:
a) orientação do Grupo Nacional de Coordenadores dos Centros de Apoio Criminais, do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais, enunciado 20: Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.
b) Orientação Conjunta 3, do MPF, item 8: Admite-se o oferecimento de acordos de não persecução penal no curso da ação penal, podendo ser dispensada, nessa hipótese, a instauração de PA, caso a negociação seja realizada nos próprios autos do processo. Nessa hipótese, deverá ser requerido ao juízo o sobrestamento da ação penal.
O STJ tem se inclinado para adotar a primeira posição.
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