Princípios Gerais do Direito Tributário – a Irretroatividade
Conceitos Iniciais
Este artigo tem como objetivo explicar o que é o princípio da irretroatividade e como a jurisprudência o aplicou na doutrina e nas suas interpretações.
Como já explicado anteriormente em textos de outros princípios tributários como o da legalidade e da anterioridade, tais princípios são basicamente oriundos da teoria do jusnaturalismo, ou direito natural, que estabelece que existe toda uma construção do direito desde a antiguidade, inclusive no Império Romano. Estes princípios constituem, assim, uma base, uma fundação de experiências que buscou aplicar bom senso, racionalidade, equidade, igualdade, justiça e pragmatismo.
À medida que o governo das leis se sobrepôs ao governo dos homens, algumas noções foram formando esse corolário da expressão “governo das leis”: a legalidade, que estabelece que tributo somente pode ser cobrado se estiver expresso em lei; a anterioridade, que preceitua que deve haver um lapso temporal para o contribuinte poder se preparar para pagar o tributo; e a irretroatividade, que assevera que a lei não poderá atingir fatos passados.
Dessa maneira, a irretroatividade assegura a segurança jurídica mínima em um genuíno Estado Democrático de Direito – impedindo a arbitrariedade estatal de causar danos a seus contribuintes e cidadãos, estabilizando assim as relações jurídico-tributárias. A atuação da administração tributária deve seguir a lei da mesma forma que deve ser previsível. A própria ideia de segurança jurídica é concretizada no princípio da irretroatividade, que é um dos meios de assegurar a adequada aplicação da justiça material.
A irretroatividade na Constituição Federal (CF/88)
A teoria do direito tributário aceita as hipóteses de retroatividade da lei tributária – isto é, a lei atingindo fatos passados – em três gradações de intensidade: a máxima, média e mínima.
A retroatividade máxima ocorrerá quando a lei atingir a coisa julgada ou os fatos jurídicos consumados. A retroatividade média será quando a lei atingir apenas os direitos já existentes, mas ainda não integrados ao patrimônio dos indivíduos. E será mínima quando atingir apenas os efeitos dos fatos anteriores verificados após sua edição.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) não admite nenhuma das três possibilidades de retroatividade. Em seu texto, há duas alusões claras a esse raciocínio: a primeira delas é o artigo 5.o “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”
A segunda determinação está no próprio capítulo da ordem tributária, em seu artigo 150: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;”
Desta maneira, é possível depreender que a CF/88 não acatou a possibilidade de retroatividade da lei – exceção, claro, à lei penal mais benéfica ao apenado. A lei tributária, tanto de acordo com a lei n. 5.172/1966 (o Código Tributário Nacional – CTN) como a CF/88 assimilaram a caráter prospectivo da lei tributária – é dizer, ela somente poderá atingir fatos posteriores a ela.
A irretroatividade e o CTN
Um dos diplomas legais que regem as normas gerais de direito tributário no Brasil é a lei n. 5.172/1966 – o Código Tributário Nacional (CTN). O CTN foi implantado em nosso sistema tributário inclusive antes da CF/88. E existem algumas situações em que o CTN permite, ou melhor, possibilita, a retroatividade da lei tributária, em algumas situações bem específicas.
Primeiro, o CTN, em seu artigo 105, estabeleceu a regra geral: “A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.” Ou seja, decorre deste texto a ideia de que a lei tributária possui efeitos prospectivos, ou seja, produz efeitos no futuro.
Entretanto, o artigo 106 traz o que poderia ser entendido como exceções: “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;
II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”
A situação prevista no primeiro inciso é de ordem interpretativa. O que isso quer dizer? Não seriam, a rigor, todas as leis interpretativas? Não. A melhor explicação para esse inciso reside no fato de que nem sempre a lei define contornos claros para as suas definições. Muitas vezes, outras leis são criadas com o intuito de definir melhor os conceitos insuficientemente delineados na lei anterior.
Nesse caso, esta lei posterior não possui outros elementos, e esta é uma lei eminentemente interpretativa. E, sob este aspecto, ela somente pode ser aplicada à situação anterior a ela (como exceção à irretroatividade) no caso de preencher lacunas decorrentes de deficiente lei anterior. Então, não há inovação no sistema legal – salvo explicar melhor a norma, portanto não cabe punições ou penalidades – já que se está explicando melhor a lei.
O segundo inciso trata de outras situações, que não tendo sido definitivamente julgadas, permitem uma retroatividade benéfica ao sujeito passivo. Afinal, se durante o processo, surge uma lei que descaracteriza um ato como infração, não faz mais sentido punir a conduta – já que ela foi extinta do ordenamento jurídico. Na segunda hipótese, há ainda duas condicionantes: que o ato não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento do tributo – por óbvio, para não excepcionar a irretroatividade para premiar quem promove injustiça. A terceira situação relativa aos atos não definitivamente julgados trata de assegurar que a lei, nestes casos, somente excepcione a irretroatividade se for mais benéfica ao sujeito passivo.
A irretroatividade e a jurisprudência
A irretroatividade da lei tributária é considerada em si uma das garantias fundamentais dos cidadãos-contribuintes – inclusive elevada à categoria de cláusula pétrea pelo Supremo Tribunal Federal. Mas nem sempre o entendimento foi tão claro assim. Uma questão surgiu da interpretação do que se considera fato gerador pendente, demonstrado no artigo 105 do CTN: “A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.”
O que são fatos geradores pendentes? A redação do CTN define que são fatos geradores que se iniciou sua ocorrência, mas que não foram concluídos. Um exemplo disso é o fato gerador do Imposto de Renda para as pessoas físicas (IRPF) cujo fato gerador se conclui no dia 31 de dezembro de cada exercício. Logo, em uma interpretação do artigo do CTN a esta situação observa-se que a cada novo ano o fato gerador se inicia – mas apenas para concluir sua formação no último dia do ano, o dia 31 de dezembro.
Seguindo nesta linha de raciocínio, então o fato gerador de alguns impostos pode ser relativamente longo, constituindo um fato gerador que se inicia no primeiro dia do ano, mas fica pendente até o último dia do ano – onde ele de fato se completa.
Foi seguindo este raciocínio que o STF publicou a Súmula 584-STF: “Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.” Para entender o impacto dessa súmula, é necessário compreender como se dá a cobrança do Imposto de Renda.
Existem empresas que recolhem o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) calculado nas formas do lucro real (trimestralmente), no lucro presumido (em que há um valor que incide mensalmente sobre o faturamento das empresas). As pessoas físicas recolhem o IRPF em sua maior parte na fonte (o desconto mensal no salário do empregado).
Ou seja: se, durante o ano de 2015 surgisse alguma lei que alterasse situações que resultassem em uma cobrança maior do Imposto de Renda (por exemplo, a revogação de uma isenção, ou a redução de um incentivo) ela seria aplicada ao imposto de Renda já calculado e pago pelo contribuinte, seja ele pessoa jurídica ou mesmo pessoa física – podendo inclusive resultar em valores adicionais, além dos valores pagos.
Ao mesmo tempo, existem doutrinadores que entendem que não existe fato gerador pendente – o que existe é negócio jurídico sob condição suspensiva (em que seus efeitos ocorrem com o implemento da condição) ou sob condição resolutória (em que seus atos já estavam valendo desde o momento da prática ou da celebração do negócio).
A vigência da súmula começou a gerar um impacto que foi definido como retroatividade imprópria. Não obstante o STF ter promulgado esta súmula, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em grande parte de suas decisões, não possuía o mesmo entendimento – gerando um conflito doutrinário entre os tribunais superiores. Aqui vai mais um exemplo: um contribuinte que paga regularmente seu IRPF todos os meses em holerite no ano de 2019. O Congresso Nacional aprova uma lei que resultará em mais IRPF a pagar. Pelo princípio da anterioridade, ela só vai criar efeitos no próximo exercício que é 2020. Mas será a lei vigente no ano de entrega da declaração – o que desrespeita o princípio da irretroatividade. É possível notar o tamanho do problema que esta situação gera.
E durante muito tempo essa súmula permaneceu válida, até que houve uma ação no Supremo questionando essa retroatividade imprópria, em operações de exportação – autorizadas de forma a incentivar a atividade, em um caráter extrafiscal. O STF, na época, compreendeu que a súmula não se aplicava a este caso em especial, já que o objetivo do legislador era justamente o de incentivar exportações.
Depois de mais alguns anos a súmula 584-STF finalmente foi cancelada, não sendo mais válida nas decisões judiciais.
Conclusões
O princípio da irretroatividade, juntamente com os princípios da legalidade e da isonomia, estabelece um marco jurídico que traz aos cidadãos estabilidade e segurança jurídica necessários para o “governo das leis” (rule of law) em que se busca a igualdade de todos perante a lei.
A diferença entre a expressão “governo dos homens” e a anterior é a de que no “governo dos homens” o Estado poderia agir de forma tirânica, perseguindo alguns, enquanto não atuava contra outras pessoas que se encontravam na mesma situação. Thomas Hobbes, em sua obra “O Leviatã”, defendeu este caráter totalitário dos governos monárquicos.
O governo das leis muda a relação de poder entre o povo e seu governante. Não mais ele poderá abusar do poder estatal para prejudicar, perseguir ou fazer coisas piores contra sua população. A partir dessa transformação, leis teriam de respeitar os direitos e garantias individuais dos seus cidadãos, respeitando a irretroatividade, pois leis retroativas só podem ser implantadas por tiranos, e obedecidas por escravos.
Desta forma, é possível compreender o que motivou o STF a dar para os princípios do direito tributário esse caráter de cláusula pétrea – a ideia aqui é proteger o cidadão dos abusos estatais.
Ricardo Pereira de Oliveira
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