O objetivo deste artigo é o conceito de uma lei orgânica, sua origem e qual a sua utilidade na organização político-administrativa. Para que se tenha a melhor definição de lei orgânica, é preciso recorrer ao direito constitucional, que trata das normas que regem de maneira geral os assuntos de um estado organizado, um país.
No direito internacional, os elementos que definem um estado são os seguintes: povo, território, finalidade e soberania. Conforme Dalmo de Abreu Dallari, doutrinador de direito constitucional, o estado é “uma ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”. Desta forma, pode-se depreender que o estado é composto por um povo, uma comunidade que possui características comuns, como a língua, história, cultura, que possui suas próprias leis (sua ordem jurídica) soberana (pois nada é superior a suas próprias leis), cuja finalidade principal é o bem comum (a prosperidade, a permanência dessa civilização) desse mesmo povo em seu território (suas terras, seus domínios).
O conceito de estado remonta aos primórdios da civilização. O estado é a organização política que vai possibilitar a sobrevivência e longevidade de uma determinada comunidade em ordem, de maneira em que todos os integrantes possam conviver com harmonia. Harmonia nesse caso não significa necessariamente sem conflitos, mas sem possibilitar que estes mesmos conflitos desintegrem essa ordem política na comunidade.
Observando as primeiras formas de estado na história, existem as cidades-estado, como Atenas, Esparta, na Grécia antiga. Estas organizações foram as primeiras formas de estado conhecidas, por sua organização, tanto pelos códigos legais que estabeleceram a ordem entre seus cidadãos, como sua proteção, através de um exército, que os possibilitava se defenderem contra invasores. A organização de como a sociedade deveria se comportar, bem como os direitos e deveres de cada um, vem o conceito de constituição, que trata os assuntos do estado, como orienta outros diplomas legais como a constituição estadual, bem como a lei orgânica.
Existe uma relação com o estado e sua respectiva constituição. A constituição é a sua lei magna, ou carta magna – como ficou conhecida a primeira constituição que limitou o poder do rei na monarquia inglesa, em 1.215. Em que pese não ser o primeiro documento que pode ser interpretado como lei geral – afinal, já tinham existido o Código de Hamurabi, as tábuas dos Dez Mandamentos, outros documentos legais equivalentes – os primeiros estados nacionais na Europa surgiram entre os séculos X e XI, tendo sido resultado da desintegração do Império Romano e de formação dos estados feudais que surgiram depois.
Neste contexto, o surgimento dos estados nacionais vem da agregação dos feudos, unidades autônomas regionais que aos poucos foram se juntando para formar unidades políticas que geraram verdadeiros estados nacionais, mas em sua versão de reinos. O poder nesses estados era então exercido por soberanos, os reis, que, através da religião católica, eram considerados enviados por Deus para exercerem seu poder na Terra.
A monarquia da Inglaterra é uma das mais antigas, tendo sido estabelecida desde aproximadamente 927 depois de Cristo, neste regime em que o poder do rei era absoluto – decorre desse ponto o conceito de monarquia absolutista. Leis eram um atributo imposto por reis, sem nenhuma constituição ou lei orgânica que o valesse.
Um de seus reis em seus primeiros 300 anos, o rei João Sem Terra (nome dado em função de suas perdas territoriais em constantes guerras), em função das necessidades de custeio de seus esforços de guerra, aumentou de forma escorchante os impostos reais, gerando uma forte reação da parte de sua nobreza, que elaborou a carta magna, impondo limites ao poder real. Um desses limites era o de que nenhum tributo poderia ser criado sem que o fosse por lei – ou seja, por uma deliberação entre os nobres, com uma votação que, ainda que não completamente, representasse a vontade popular, mas não mais um arbítrio de um rei.
Originalmente, os estados foram se formando por uma espécie de fusão de reinos circunvizinhos (como no caso da Inglaterra, Portugal, França e Alemanha). Estas primeiras fusões geraram estados coesos que se manifestaram de forma uma. Isso quer dizer que estes estados tinham sua administração centralizada, de modo que tudo é decidido por um governo central.
Ainda que fossem formadas federações, estas abriam mão de suas soberanias em prol de uma nova autoridade, composta pelo novo estado. Entretanto, nem todos os modelos são assim. A Suíça é um país com o modelo de federação na qual várias províncias possuem auto-organização e autogoverno. Isso significa que neste país o governo central possui poder, mas que é dividido com os estados-membros. Desta maneira, existe uma constituição para o país, a federação, ou federal, mas também uma constituição dos estados-membros, ou estadual.
Estados como os Estados Unidos da América foram formados inicialmente por uma confederação de estados, na qual os estados, todos soberanos, se juntaram para proclamar a independência de um estado que os administrava. Nesse modelo, os estados inicialmente não abriram mão de sua soberania.
Depois, com a transformação da confederação das 13 colônias da América nos Estados Unidos da América, estes converteram a confederação em uma federação, representada pelo país com este nome. Ainda assim, os estados-membros cederam apenas parte de sua soberania, mantendo competências para legislar sobre vários aspectos de suas realidades locais.
Inclusive, neste aspecto, os Estados Unidos tiveram uma formação que, embora análoga à dos estados modernos europeus, foi feita de dentro pra fora. As federações podem ser formadas por desagregação ou agregação. A formação da federação dos Estados Unidos foi feita por agregação – conforme Alexis de Tocqueville atesta em seu livro “Democracia na América”, tendo sido originada pela comunidade, pela cidade, pelo condado, pelo estado e pelo país. É neste exemplo que se vê uma preferência política de resolver questões localmente – exigindo que leis locais regulem várias questões, no limite exigindo uma lei orgânica.
Inicialmente, não houve menção na Constituição Federal de 1824 (CF/24), a primeira do Brasil Império. A organização política era então composta pela União e os estados federados.
Já a primeira constituição do Brasil República, a Constituição Federal de 1891 (CF/91) ainda mantém esta mesma disposição de organização administrativa, assumindo a possibilidade de o Congresso Nacional, por meio da Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926 decretar leis orgânicas – mas aqui para assuntos de interesse geral, como a lei orgânica da magistratura, por exemplo.
Nas primeiras constituições brasileiras, há somente a previsão de constituições estaduais, sendo que somente nelas vai haver previsão de lei orgânica, nos dois sentidos: tanto para leis de interesse geral como para o regramento dos municípios.
Isso começou a mudar com a Constituição Federal de 1934 (CF/34), que passou a prever que o distrito federal, onde funciona a sede do governo federal (na época, no Rio de Janeiro) seria administrado por um prefeito e seu ordenamento jurídico, regido por lei orgânica.
A Constituição Federal de 1937 (CF/37) continua seguindo esse preceito e a Constituição Federal de 1946 (CF/46) observa este posicionamento, prevendo que Estados e Municípios sejam regidos pelas Constituições Estaduais e o Distrito Federal, por lei orgânica. A Constituição Federal de 1967 (CF/67) é silente neste assunto, ou seja, não há menção sobre qual regramento deve ser aplicado aos Estados e Municípios, sendo decorrência lógica de que, não havendo mudanças constitucionais, mantém-se o que até então vinha sendo praticado.
Então, o que se observa é que a organização administrativa no Brasil, desde o império até a proclamação da república e ao longo do século XX sempre foi compartilhada entre a União e os estados-membros, com algumas exceções aos territórios (autarquias geográficas criadas e mantidas pela União com o propósito de defender fronteiras e sujeitos às leis e constituição federais). Isso somente vem a mudar com a Constituição Federal de 1988 (CF/88).
O estado federativo brasileiro, desde o advento do império até a CF/88 possui uma característica de federalismo dual, representado por duas entidades – a União e os estados-membros. Entretanto, em um país de dimensões continentais como o Brasil isso traz dificuldades quanto a assuntos de caráter local.
Como os municípios não participavam dos modelos de federalismo anteriores, a administração pública das cidades ficava aquém, com a exceção representada pelas cidades que também eram capitais dos Estados, pois, por serem sedes administrativas dos governos estaduais, sempre eram melhor administradas e mais assistidas do que as demais cidades.
Isso começou a mudar com a CF/88, que alçou os Municípios a fazerem parte da estrutura federativa do território brasileiro, conforme o art. 18 “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
A partir da CF/88, o país passa a admitir a tríplice estrutura do Estado brasileiro (Manoel Gonçalves Ferreira Filho). Observa-se que nesta estrutura existe a União, os Estados e os Municípios. O Distrito Federal é um ente híbrido, mas que não se enquadra inteiramente nem como Estado, nem como Município, sendo uma unidade federada com autonomia parcialmente tutelada.
Em decorrência disso, surge uma previsão de ordenamento jurídico apto a reger os Municípios, no art. 29: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (…)
Em seguida, são elencadas as composições do poder executivo e legislativo (não há previsão de poder judiciário no âmbito dos Municípios). E as competências dos Municípios estão no art. 30: “Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; (…).
Existem mais competências, mas estas três resumem a maior parte das competências municipais na CF/88. Esse municipalismo assegura também um sistema federativo por cooperação, onde os entes se auxiliam mutuamente.
Com a finalidade de aprimorar a gestão pública e também permitir uma participação maior da população nos rumos da política municipal, a CF/88 dotou os Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, afinal somente os Municípios podem visualizar melhor o que exige sua atenção, sendo que isso pode variar de município para município.
A competência de suplementar a legislação federal e estadual está relacionada com seus próprios interesses locais, pois estas legislações, por se referirem a espaços maiores, podem não atender aos Municípios em suas necessidades específicas. Entretanto, esta competência suplementar possui limites: ela não pode ser contrária aos ordenamentos da Constituição Federal e da Constituição Estadual onde se localiza o município.
A terceira competência é o que sustenta e financia a autonomia municipal: instituir e cobrar os tributos para os quais o Município é competente, tendo o Município a obrigatoriedade de prestar contas da utilização dos recursos arrecadados.
A jurisprudência dos tribunais superiores, notadamente a do Supremo Tribunal Federal (STF) é cristalina na interpretação dos limites da lei orgânica: em cada uma das três hipóteses principais em que é possível legislar, a lei orgânica não pode ser contrária a dispositivos contidos na Constituição Estadual ou na Constituição Federal.
No que se refere ao controle de constitucionalidade, a lei orgânica não pode ser o parâmetro de controle de constitucionalidade, pois na CF/88 somente são previstos como parâmetros de controle a Constituição Estadual, perante os tribunais de justiça do estado, bem como a Constituição Federal, esta perante o Supremo.
Neste texto se buscou conceitualizar e esclarecer a lei orgânica, bem como suas origens e importância para a organização política. A lei orgânica surge como uma manifestação básica de lei local, para a gestão do município, tendo em vista suas peculiaridades.
A necessidade de leis se verifica ao longo da história humana, sendo uma consequência intrínseca da formação civilizacional da humanidade. Nos primórdios havia a barbárie e ao longo dos tempos se verifica que a sociedade humana somente pode sobreviver e prosperar quando consegue conviver em paz e em ordem.
A formação de famílias, depois a de clãs, de comunidades, cidades, estados e nações foi sendo possível à medida que o caos gradualmente foi dando lugar à ordem. E isso se deve largamente ao acordo das sociedades em elaborar e seguir suas próprias leis.
Com os primeiros estados, surge também a necessidade de uma lei maior, uma constituição. A constituição é a lei magna, a lei que deve reger os principais fundamentos de uma nação, um país.
Com a evolução constitucional, aos poucos vai se sobressaindo a necessidade de aplicar um regimento em espaços menores, visando a uma gestão dos assuntos públicos em caráter mais específico, mais regional. Desta maneira, o estado fica mais subdividido, nas constituições estaduais.
Depois da Constituição Federal de 1988, o federalismo brasileiro passa a reconhecer a responsabilidade e poder dos municípios, no sentido de possibilitar que a gestão pública possa também atender a questões de interesse local. Para isso, a CF/88 prevê que os municípios serão regidos por uma lei orgânica, para buscar atender e resolver seus assuntos.
A lei orgânica será aprovada por dois terços da câmara de vereadores, em dois turnos de votação, com interstício mínimo de 10 dias. O quórum é maior do que o exigido para uma alteração constitucional (dois terços), sendo que as duas votações devem ter um intervalo mínimo de dez dias entre eles. Estes elementos resumem a finalidade e importância da lei orgânica municipal.
Ricardo Pereira de Oliveira
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