Novo Decreto que facilita a posse de armas: Entenda o que mudou
Introdução
O Presidente da República publicou ontem o Decreto 9.685/2019, que alterou diversos dispositivos que regulamentam os requisitos para a aquisição e registro de armas de fogo. Ao fazê-lo, levou a cabo uma das promessas mais propagadas durante a campanha eleitoral.
Neste artigo, o professor Michael Procopio e eu faremos breves comentários sobre esse novo ato normativo. Na primeira parte do nosso artigo, comentaremos as quatro alterações principais que foram promovidas. Na segunda parte, falaremos sobre alguns erros comuns que se têm incorrido ao interpretar o decreto. Trata-se de um tema que se encontra cercado de fake news. Na terceira parte, faremos breves comentários sobre a possibilidade de o decreto ter a sua legalidade ou constitucionalidade questionada.
PARTE I: O que mudou?
A Lei 10.826/2003, conhecido como Estatuto do Desarmamento, dispõe sobre o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição. De modo bastante geral, podemos dizer que essa lei estabelece os requisitos básicos que devem ser preenchidos para que alguém possua uma arma de fogo ou porte uma arma de fogo. A posse autoriza que o proprietário da arma a mantenha em sua residência ou no seu local de trabalho; o porte, como o nome já indica, permite que a pessoa a leve consigo. Em quaisquer das duas hipóteses, deve o proprietário registrar a arma de fogo no órgão competente e promover a renovação do registro periodicamente.
Embora a lei estabeleça esses requisitos, o fato é que ela não desceu a minúcias. O legislador deixou ao Poder Executivo uma margem considerável para atuação. E foi dessa forma, aproveitando-se desse espaço, que o Presidente da República editou o Decreto 9.685/2019, o qual promoveu alterações significativas no Decreto nº 5.123/2004, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento. Dentre as inovações, destacam-se quatro: a) alteração das regras que regulamentam a aquisição de armas de fogo de uso permitido; b) aumento do prazo de validade dos registros de armas de fogo de uso permitido; c) aumento do prazo de validade dos registros de armas de fogo de uso restrito; d) renovação automática da validade dos certificados expedidos até a data da sua publicação.
A primeira novidade é a mais importante, porque concerne ao direito da aquisição de uma arma de fogo.
Sobre o tema, dispõe o artigo 4º da Lei 10.826/2003:
Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:
I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos; (Redação dada pela Lei nº 11.706, de 2008)
II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.
Como se pode observar, além dos requisitos enumerados pelos incisos I, II e III, a lei exige a demonstração da efetiva necessidade da aquisição da arma de fogo. Assim, não basta ter aptidão técnica, psicológica, e não possuir antecedentes. O interessado precisa demonstrar que necessita do artefato.
Até a data de ontem, a regulamentação do dispositivo dava à Polícia Federal uma relativa discricionariedade na avaliação desse requisito. E, em razão disso, havia rigor nessa análise, porque argumentos genéricos, que se aplicam ao conjunto da população – como violência urbana – não eram considerados motivos idôneos para justificar a autorização de compra de uma arma de fogo. Seria necessário demonstrar a necessidade concreta, e não meramente abstrata, do artefato.
Foi isso que mudou consideravelmente com a edição do Decreto 9.685/2019, que reduziu a densidade normativa da cláusula da efetiva necessidade através de duas frentes. Pela primeira, o novo decreto trouxe a presunção de veracidade dos fatos elencados pelo requerente[1]. Assim, se o interessado afirmou que necessita da arma de fogo porque foi ameaçado, a Polícia Federal, ao analisar o pedido, deve considerar como verdadeiro esse fato, dispensando a comprovação da efetiva ameaça. Pela segunda, o Decreto elencou diversas circunstâncias em que se considera presente a efetiva necessidade, independentemente de qualquer outro argumento adicional. Transcrevemos o dispositivo:
Art. 12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá:
I – declarar efetiva necessidade; […]
§ 7º Para a aquisição de armas de fogo de uso permitido, considera-se presente a efetiva necessidade nas seguintes hipóteses:
I – agentes públicos, inclusive os inativos:
a) da área de segurança pública;
b) integrantes das carreiras da Agência Brasileira de Inteligência;
c) da administração penitenciária;
d) do sistema socioeducativo, desde que lotados nas unidades de internação a que se refere o inciso VI do caput do art. 112 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; e
e) envolvidos no exercício de atividades de poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente;
II – militares ativos e inativos;
III – residentes em área rural;
IV – residentes em áreas urbanas com elevados índices de violência, assim consideradas aquelas localizadas em unidades federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes, no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública;
V – titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais; e
VI – colecionadores, atiradores e caçadores, devidamente registrados no Comando do Exército.
Observem que o inciso I é bastante amplo, porque abrange todos os servidores “envolvidos no exercício de atividades de poder de polícia administrativa ou correição em caráter permanente”. Assim, enquadram-se nesse dispositivo os auditores fiscais, agentes da vigilância sanitária, fiscais do IBAMA, etc.
O inciso II concerne aos militares, incluindo os inativos.
O inciso III faz presumir a efetiva necessidade da arma de fogo para os residentes em áreas rurais, independentemente de qualquer argumentação adicional. O inciso IV, para os residentes em áreas urbanas com mais de dez mil homicídios por cem mil habitantes no ano de 2016. Todos os Estados enquadram-se nesse requisito[2].
O inciso V concerne aos titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais. Portanto, o dono de uma padaria, o proprietário de um restaurante, o titular de uma mecânica, dentre outros, podem manter uma arma de fogo no estabelecimento.
Por fim, o inciso VI presume a efetiva necessidade aos colecionadores, atiradores e caçadores registrados no Comando do Exército.
Na prática, com a edição desse Decreto, a efetiva necessidade caiu por terra. Todos preenchem esse requisito. Quem mora na zona rural, basta alegar o inciso III. Quem mora na zona urbana, o inciso IV.
As outras inovações do Decreto dizem respeito ao registro da arma de fogo.
Como já mencionamos, a Lei 10.826/20003 exige que o certificado seja renovado periodicamente, mas não estabelece qualquer prazo, deixando para o regulamento a fixação. Até ontem, o prazo de renovação para as armas de uso permitido era de cinco anos. Passou a ser de dez anos. Para as armas de uso restrito, o prazo de renovação era de três anos, e passou a ser também de dez anos.
Por fim, o Decreto renovou automaticamente os certificados de arma de fogo expedidos antes da sua publicação[3].
PARTE II – Combatendo FAKE NEWS
Viralizaram postagens afirmando que, a partir de agora, todos podemos sair às ruas utilizando armas de fogo. Nada mais equivocado. Como vimos ao longo do texto, o decreto facilitou a posse de arma de fogo, não tendo trazido qualquer flexibilização no que tange ao porte de armas. Portanto, aqueles que obtiverem o direito à posse e, por conseguinte, adquirirem uma arma, devem mantê-la em seu domicílio ou no local do seu trabalho. Caso contrário, não só cometem uma ilegalidade, mas um crime, cuja tipificação se encontra no artigo 14 da Lei 10.826/2003. [4]
PARTE III – O Decreto é Legal?
Como mencionamos, a Lei 10.826/2003 deixou um espaço razoável para atuação do Poder Executivo na regulamentação dos seus dispositivos. Assim, nada impediria que o Presidente da República flexibilizasse alguns dos requisitos previstos no Decreto anterior.
No entanto, pode existir certa plausibilidade[5] na alegação de que o Decreto 9.685/2019 foi longe demais na alteração das regras para aquisição de armas de fogo. Explicamo-nos.
O artigo 4º, caput, da Lei 10.826/2003, exige que o interessado declare possuir efetiva necessidade na aquisição da arma de fogo. Embora a expressão seja um tanto indeterminada, é certo que ela possui algum grau de determinação. Não se trata de uma frase com grau zero de sentido.
O novo decreto, no entanto, embora tenha mantido a exigência da demonstração da efetiva necessidade, na prática acabou por torná-la uma mera formalidade. De um modo ou de outro, todos conseguem se enquadrar nos novos critérios que foram estabelecidos.
Assim, é possível argumentar que, ainda que por via transversa, o novo Decreto ofendeu o conteúdo da lei, retirando um dos requisitos exigidos por ela para aquisição do direito à posse de uma arma de fogo. Trata-se de uma questão que possivelmente o Poder Judiciário será instado a se manifestar.
Considerações Finais
Por fim, colocamo-nos à disposição de vocês.
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[1] Art. 12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá:
I – declarar efetiva necessidade; […]
§ 1º Presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade a que se refere o inciso I do caput, a qual será examinada pela Polícia Federal nos termos deste artigo.
[2] http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf
[3] Art. 2º Os Certificados de Registro de Arma de Fogo expedidos antes da data de publicação deste Decreto ficam automaticamente renovados pelo prazo a que se refere o § 2º do art. 16 do Decreto nº 5.123, de 2004.
[4] Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
[5] Não estamos assumindo nenhuma posição, mas tão somente compartilhando algumas teses que podem ser invocadas.