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Moeda única Brasil-Argentina: bom ou ruim?

Aviso: As opiniões contidas neste artigo são estritamente pessoais e não guardam nenhuma relação com a Comissão de Valores Mobiliários, instituição em que trabalho.

Economistas (sérios, pois os picaretas não são considerados nesse texto) quase sempre discordam. Há até uma piada (sem graça) que diz que a economia é o único campo onde duas pessoas podem ganhar um Prêmio Nobel dizendo exatamente coisas opostas.

Mas, há um assunto em que os economistas quase sempre concordam: integração econômica e comércio entre países são boas ideias!

O Brasil é bom na produção de grãos (soja, por exemplo). A Argentina é boa na produção de doce de leite (e como!!). Se os países não se integram economicamente e, com isso, não realizam comércio entre si, os brasileiros ficam sem doce de leite, enquanto os argentinos acabam sem soja.

Ademais, por conta da falta de integração, o mercado de cada país individualmente é menor que a soma dos dois mercados. Assim, caso os países não exportem, o preço da soja é menor no Brasil e o preço do doce de leite é menor na Argentina quando comparados aos preços na presença de exportação, o que é ruim para a economia dos dois países.

Em resumo, brasileiros e argentinos viveriam melhor se os países tivessem maior grau de integração econômica e exportassem seus produtos.

David Ricardo[1] foi quem melhor percebeu essa ideia. Segundo Ricardo, os países devem se especializar na produção dos bens em que são melhores e exporta-los, enquanto importam os demais bens. Todos ganham com isso! É a ideia da vantagem comparativa.

A ideia de Ricardo é poderosa! Basta vermos os países mais desenvolvidos nos dias de hoje: TODOS possuem elevado grau de abertura econômica, ou seja, fazem muitas transações econômicas com outros países.

E uma estratégia eficaz para aumentar o comércio internacional de um país é a integração econômica. Não há nada de complicado aqui: países se aliam entre si, formando blocos ou acordos bilaterais, para aumentar o grau de integração econômica e, com isso, elevar a quantidade de transações econômicas realizadas entre eles.

A depender do grau de integração desejado, um arranjo é estabelecido.

Digamos, por exemplo, que os países desejam formar um bloco para favorecer as exportações do que fazem de melhor entre si. Uma ideia possível é retirar as tarifas de importação entre eles em relação a esses produtos e tarifar as importações para estes bens vindas de países de fora do bloco.

Essa é a ideia da tarifa externa comum (TEC), praticada por uma união aduaneira. Resumindo, os países que adotam a TEC pretendem incentivar o comércio internacional entre si, se valendo de suas vantagens comparativas, e proteger esse arranjo de países de fora do bloco. Senhoras e senhores, é assim que o Mercosul funciona (ou deveria funcionar).

Outros arranjos podem ser preferidos, como o mercado comum e a união econômica e monetária.

No mercado comum, vigora a união aduaneira (com aplicação da TEC) mais livre circulação de fatores de produção (trabalhadores, capitais, serviços etc.).

Já na união econômica e monetária temos o mercado comum mais a integração da política monetária e cambial, ou seja, a existência de moeda única e política monetária centralizada.  É o caso dos países que adotam o Euro na União Europeia.  

Bem, já sabemos que o comércio entre países é bom e que a integração econômica é uma estratégia para se atingir esse fim. Agora, vamos aos fatos.

Na última quinta-feira (06/06/19), o Presidente Bolsonaro anunciou que Brasil e Argentina “pretendem avançar com proposta de criar uma moeda comum que se chamaria ‘peso-real’”[2].

A notícia repercutiu imediatamente na mídia e alguns já comentaram o assunto sob distintos aspectos.

Identifico-me com o aspecto “político”, ou seja, que a proposta nada mais é que um artifício para auxiliar o Presidente Macri em sua campanha para a reeleição. A Argentina passou (mais uma vez) por forte desvalorização cambial recentemente, o que provocou aumento significativo da inflação e perda de popularidade de Macri. As pesquisas de opinião colocam sua concorrente, Cristina Kirchner, à frente na corrida presidencial e as eleições ocorrem em outubro/novembro de 2019.

Como veremos nos próximos tópicos, a proposta não é economicamente factível nesse momento. Nem que se desejasse implanta-la, não seria possível fazer nos governos de Bolsonaro e Macri (caso reeleito). O caso do Euro é citado como exemplo.

Condições Econômicas para adoção da moeda comum e o caso do Euro.

A adoção de moeda comum pode ser ótima, ou péssima. Tudo depende das condições econômicas existentes.

Vamos utilizar um exemplo brasileiro para compreender esses prós e contras. Nosso país está dividido em 26 Estados mais o DF, de modo que podemos pensar nessas unidades da federação como bem, sendo “países”. Assim, teríamos 27 “países” dentro do Brasil que adotam uma moeda única, o Real. E esse ajuste funciona, não é mesmo?! Ou seja, já temos um bom exemplo de moeda comum vigorando entre os “países” que constituem o Brasil.

A pergunta aqui é: qual o motivo desse arranjo funcionar?

Respondendo: depende dos mecanismos que possuímos para absorver choques econômicos externos.

Imagine que o mundo passa por uma crise econômica que reduz suas importações por commodities brasileiras. As commodities brasileiras, por hipótese, são produzidas apenas nos “países” do centro-oeste brasileiro. Bem, estes “países” irão sofrer mais economicamente do que os outros. Provavelmente irão apresentar mais desemprego, mais déficit em transações correntes e, provavelmente, maiores déficits fiscais. 

No entanto, os habitantes dos diferentes “países” do Brasil falam a mesma língua, possuem culturas e hábitos similares, estão razoavelmente conectados entre si via rodovias e aeroportos. Dessa forma, uma crise nos “países” do centro-oeste irá deslocar fatores de produção desses locais para os outros países que não se encontram em crise. Um ajuste nos salários deverá ocorrer nos “países” que importam esses trabalhadores, mas nada que ocasione grandes conflitos.

Resumindo, a mobilidade dos fatores de produção torna possível a redução no desemprego nos “países” em crise, bem como auxilia na resolução do problema fiscal (afinal, os governos dessas localidades irão gastar menos com assistência e proteção social) e da questão externa. Os efeitos negativos se dissipam no médio prazo e logo a economia volta ao seu nível “normal” novamente.

 Bem, a mobilidade dos fatores é o primeiro e fundamental mecanismo que deve existir para um regime de moeda comum funcionar.

Há outras variáveis fundamentais e exigidas, mas vamos nos concentrar na variável “política econômica”.

Peço que se acomode, se possível sentado (risos!). A conversa é longa e cheia de encadeamentos. Vamos lá!

A adoção de moeda comum faz com que o país perca a autonomia na condução da política monetária e, consequentemente, cambial.

Vamos continuar com o exemplo da crise vivida pelos “países” do centro-oeste brasileiro.

Uma das formas de ajustar a economia pode ser via política monetária expansiva. O “país” emitiria mais moeda, geraria um pouco de inflação, o que provocaria, no curto prazo, redução dos salários reais e desvalorização da taxa de câmbio. Esses dois efeitos podem permitir redução do desemprego e do déficit em transações correntes, de modo que o “país” conseguiria, no curto prazo, se defender do choque externo sofrido.

No entanto, o “país” não pode realizar política monetária e cambial no regime de “moeda única”. Afinal, o controle da quantidade de moeda e do câmbio está na mão do Brasil, sendo que os “países” dentro do Brasil não possuem um Banco Central para chamar de seu.

Aqui, temos outra questão: a adoção de moeda comum faz com que um país perca autonomia das políticas monetária e cambial. Ou seja, ele não consegue exercer estas políticas e se defender de choques externos adversos.

Mas, ainda assim sobra a política fiscal. Ou seja, os “países” ainda podem gastar mais para tentar reativar a economia. Ocorre que essa medida funciona por pouco tempo, quando funciona.

No exemplo utilizado, a política escolhida seria fiscal e expansionista. Assim, o “país” do centro-oeste escolheria gastar mais em seu orçamento público e o resultado, no curto prazo, seria um leve aumento de inflação e do nível de atividade econômica.

Teríamos, nesse caso hipotético, recuperação do mercado de trabalho (via redução dos salários reais), aumento da atividade econômica (o aumento dos gastos eleva a demanda do setor público, o que acarreta em maior produção no curto prazo) e aumento de déficit em transações correntes (como a taxa de câmbio não é alterada, o aumento da atividade econômica eleva a quantidade de bens importados e reduz a quantidade de bens exportados, gerando então mais déficit em transações correntes).

Essa situação tem efeitos positivos por pouco tempo, justamente por conta do agravamento do saldo em transações correntes e do resultado fiscal.

Vejamos.

A expansão gos gastos público eleva o déficit público, o que acarreta em aumento da dívida pública desse “país”. Se a poupança interna desse “país” for insuficiente ou possui custo elevado (juros internos maiores que externos), a dívida externa irá aumentar.  Paralelamente a isso, ocorre aumento do nível de preços quando nos deslocamos ao médio e longo prazos. Mais preços significam bens mais caros interna e externamente, ou seja, agravamento do déficit em transações correntes.

E aqui reside o grande problema.

O aumento da dívida externa eleva as obrigações em moeda externa, afinal o “país” não emite moeda externa e precisará dela para pagar seus vencimentos. Como o saldo em transações correntes é negativo, não há moeda externa aqui para utilizar no pagamento dessas dívidas, ou seja, as transações correntes agravam o problema da dívida externa. Mais dívida precisa ser emitida.

No front interno, a situação não é positiva. Lembrando, o “país” apresenta inflação crescente, sua produção é feita a custos mais elevados e, no médio e longo prazos, isso pode aumentar o desemprego, reduzir a produção das empresas e agravar o nível de renda do “país”.

Os credores externos percebem isso e…passam a cobrar mais caro para financiar o déficit público, até que a situação fique inviável.

É claro que descrevi uma situação hipotética, mas esse fato já aconteceu com países da União Europeia que adotam o Euro, sobretudo com a Grécia.

Resumidamente, o caso grego transcorreu da forma explicitada anteriormente. Quando adotou o Euro, a Grécia perdeu as políticas monetária e cambial, já que o Banco Central Europeu é responsável por elas.

Mas, os gregos não são toa ingênuos assim. Eles ingressaram no Euro, pois o custo de financiamento externo se reduziu, melhorando o acesso a crédito dos gregos. Mais dinheiro e maior abertura econômica tiveram efeitos positivos na Grécia, pois o país apresentou aumento de produtividade, crescimento econômico e ganhos de bem-estar para os gregos com a abertura de fronteiras propiciadas pela União Europeia.

Como é possível verificar no gráfico abaixo, a Grécia (em vermelho) apresentou taxa de crescimento elevada e, muitas vezes, superior aos países do Euro (em azul) e da OECD (em preto) de 1996 até 2007:

Ocorre que os gregos permaneceram fiscalmente indisciplinados. O gráfico abaixo apresenta o déficit fiscal do governo grego em relação de 1995 até 2018.

Como é possível notar, a Grécia apresentou déficits fiscais elevadíssimos desde então, chegando a 15% do PIB em 2009, no auge da crise econômica da época.

Como resultado, a inflação na Grécia foi superior aos demais países do bloco, o que penalizou as exportações dos gregos em relação aos demais países do bloco. Assim, a Grécia apresentou recorrentes déficits em transações correntes, acúmulo de dívida externa até que a “música parou”. Quando isso ocorreu não teve jeito: a Grécia ficou sem recursos para financiar o seu elevado e crescente déficit público e a crise se instalou.

Segundo dados da OCDE[3], a Grécia apresenta taxa de desemprego de 19,3% da sua força de trabalho, dívida pública em 183% do PIB, e taxa de crescimento do PIB muito abaixo da taxa de outros países desenvolvidos. Nos gráficos abaixo:

Taxa de desemprego na Grécia continua muito elevada
Dívida do governo grego continua nas alturas
Crescimento do PIB grego foi uma catástrofe desde a crise

Resumindo, a adoção de moeda comum, sob a perspectiva do caso grego, pode ser uma tragédia se não cumpridos os pré-requisitos para tanto,

Conclusões para o caso Brasil-Argentina

Pois bem, parece ter ficado claro que a existência de mobilidade de fatores de produção e estabilidade e convergência macroeconômica são requisitos fundamentais para a adoção de uma moeda comum entre países.

Sob estes pressupostos, Brasil e Argentina talvez sejam os piores países do mundo democrático. Chega a ser até engraçado considerar que estes países adotem uma moeda única.

Ambos possuem histórico recente de déficit fiscais persistentes, dívida pública crescente, elevada inflação, baixo crescimento potencial, calotes na dívida, alto desemprego e por aí vai.

 Gosto muito desse gráfico publicado pela The Economist[4], que relaciona o crescimento do PIB argentino a fatos políticas e econômicos importantes:

Crescimento do PIB argentino relacionado com eventos importantes. Nuestros hermanos são tão instáveis quanto nosotros.

Em resumo, é uma história de sucessivas tragédias e indisciplinas macroeconômicas. O histórico brasileiro não é muito diferente nesse quesito.

Como afirmei no início do artigo, a ideia é tão impraticável que só pode ter sido cogitada com fins políticos. Não é possível que alguém acredite na viabilidade econômica dessa medida.

É isso, pessoal! Peço desculpas pelo texto longo, mas não teve jeito.

Abraços!


[1] O texto de Paul Krugman sobre a ideia de Ricardo é genial e obrigatório: https://web.mit.edu/krugman/www/ricardo.htm

[2] https://oglobo.globo.com/economia/bolsonaro-diz-que-brasil-argentina-podem-ter-uma-moeda-em-comum-1-passo-para-um-sonho-23723269

[3] Em https://data.oecd.org/greece.htm

[4] https://www.economist.com/briefing/2014/02/17/a-century-of-decline

Vicente Camillo

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