MANIFESTO PELO DIREITO DO BRASILEIRO TOMAR VINHO FRANCÊS E ANDAR DE CARRO ALEMÃO
Aviso: As opiniões contidas neste artigo são estritamente pessoais e não guardam nenhuma relação com a Comissão de Valores Mobiliários, instituição em que trabalho.
Após 20 anos de negociações, o acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul foi finalmente selado. Trata-se de um marco histórico, não apenas econômico, e que irá afetar de forma definitiva a vida de quase 800 milhões de pessoas.
Os blocos envolvidos representam 25% do PIB mundial e o acordo entre eles envolve tanto temas econômicos (redução de tarifas de importação e cláusulas de preferência), quanto serviços, compras governamentais, facilitação de comércio, barreiras técnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias e propriedade intelectual.
Para iniciar sua validade, o acordo precisa ser aprovado pelo Parlamento Europeu, assim como nos parlamentos dos países do Mercosul. Esse processo certamente irá levar tempo, assim como pode modificar as cláusulas do acordo, que, de toda forma, ainda não são públicas no momento que esse texto foi escrito.
Dessa forma, o objetivo desse texto é analisar o processo de livre comércio e os efeitos que ele pode causar aos países participantes.
De um lado, alguns economistas, políticos e analistas celebram a medida; de outro, chovem críticas, das mais variadas formas.
Ciro Gomes, através do Twitter[1], publicou artigo em que faz críticas ao acordo:
O Presidente Bolsonaro, por sua vez, comemorou a medida:
Como não poderia ser diferente quando se trata de economia, há diferentes visões. Nesse texto, procuro defender um lado e aproveitar para lançar um manifesto em defesa de um direito que deveria ser básico para todo e qualquer brasileiro:
Comprar vinhos franceses e carros alemães!!!
Se preciso for, iremos às ruas!! rsrs…
Como veremos adiante, livre comércio e qualidade de vida têm tudo a ver!
A difícil ideia de Ricardo[2]
Um dos primeiros economistas a habitar nosso planeta, um inglês chamado David Ricardo, desenvolveu uma ideia simples e genial, mas muito mal compreendida até os dias de hoje.
A ideia é simples: os países devem se especializar na produção de bens/serviços que fazem melhor e exporta-los, importando os demais bens/serviços que fazem pior.
Simples, não acha? Bem, muitos não acham.
Seja por não a entender, seja por discordar da ideia, há controvérsia sobre a ideia de Ricardo de vantagens comparativas. Explico alguns motivos dos queixosos utilizando o caso do Brasil.
Como sabemos, o Brasil é bom na produção de bens primários (commodities) e faz isso praticamente como nenhum outro país em vários deles. Ao seguir a ideia de Ricardo, o Brasil deveria concentrar grande parte dos seus esforços (fatores produtivos) na produção de commodities e importar os demais bens que utilizamos, como bens de capital, industrializados etc.
Se você já está pensando que exportar soja e importar computadores da Apple não pode ser um bom negócio, você discorda de Ricardo e, invariavelmente, é um crítico da ideia, assim como o Ciro Gomes e tantos outros.
Mas, sinto informar, você não entendeu o processo todo. Precisaremos ir mais a fundo para compreende-lo. Vamos lá!
Segundo Ricardo, o país deve se especializar na produção do bem que possui vantagem comparativa. Ter vantagem comparativa significa produzir com menor custo de oportunidade.
Um exemplo simples. Imagine que, no Brasil, para produzir 1 tonelada de soja sejam necessários 10 homens trabalhando por 1 hora. Imagine também que, no mesmo Brasil, é preciso de 100 homens trabalhando por 1 hora para produzir 1 computador Apple. Agora, imagine que, nos EUA, sejam necessários 50 homens trabalhando por 1 hora para produzir soja e 20 deles pela mesma hora para produzir o computador da Apple. [3]
Assim, o Brasil precisa de 10 trabalhadores por hora para produzir 1 ton. de soja, enquanto os EUA precisam de 50 pessoas pela mesma hora. Obviamente, o Brasil apresenta menor custo de oportunidade (isto é, possui vantagem comparativa) na produção de soja e os EUA, na confecção de computadores Apple.
Ao se especializar na produção de soja por apresentar maior produtividade, o Brasil exporta esse produto e importa computadores da Apple. Fazendo isso, ele maximiza suas receitas em dólares, o que permite também maximizar suas importações.
E isso é positivo por, pelo menos, dois motivos.
Primeiro, o país que se especializa na produção do bem com vantagem comparativa apresenta ganhos de produtividade por dois principais motivos: (i) por conta da própria especialização, obtém ganhos de escala, o que permite exportar ainda mais o bem que ele possui vantagem comparativa; (ii) por conta da importação do bem que produz pior, pois, ao escolher importa-lo, o país paga um preço menor do que se produzisse internamente, e isso impacta positivamente na produtividade interna do país (há um choque positivo de oferta via importações).
Segundo, há migração de trabalhadores para o setor com vantagem comparativa. Justamente por apresentar maior produtividade e, por isso, pagar melhores salários, mais trabalhadores migram para este setor, reforçando a produtividade total da economia. Ao migar do setor menos produtivo para o mais produtivo, a economia como um todo apresenta aumento de produtividade).
Bem, você ainda pode estar pensando: soja “vale menos” que computador da Apple e isso é ruim!
Mais uma vez, há um erro primário e fundamental nesse argumento.
Há que se medir o “valor agregado” em determinada produção. Um computador da Apple possui alto valor agregado, certamente. Mas, a produção de soja também, em função do elevado grau de tecnologia envolvida em sua produção.
Produz-se software tanto para o computador da Apple, como para a colheita de soja. Bens de capital de altíssima tecnologia são utilizados na produção das placas e chips dos computadores, bem como para a produção de máquinas intensivas em tecnologia utilizadas no plantio e colheita da soja. Engenheiros de alta qualificação estão envolvidos na cadeia produtiva dos dois bens. E assim por diante.
E, por fim, mesmo que o valor agregado do computador da Apple seja persistentemente maior que a tonelada da soja, o ajuste é feito via taxa de câmbio. O país deficitário no comércio internacional teria uma taxa de câmbio naturalmente mais desvalorizada, o que incentivaria a exportação de mais bens com vantagens comparativas a fim de equilibrar o balanço de pagamentos. No fim das contas, haveria um equilíbrio para a situação, beneficiando TODOS os participantes do comércio.
Se você ainda pensa como o Ciro Gomes, tudo bem! Há muitos que acreditam no criacionismo, que a terra é plana…
Livre comércio e crescimento econômico
Outro ponto importante na discussão é se a abertura comercial causa efeito positivo no crescimento econômico. No fim das contas, a ideia de liberalizar o comércio é fazer o país crescer mais, tornando os seus habitantes mais ricos.
Ainda, há que se pensar se um país exportador de commodities (como o Brasil) ficaria mais rico após a liberalização comercial com a União Europeia, que possui países que exportam bens de capital e manufaturas em geral.
Olhe para o caso da Austrália:
Como é possível notar, temos um país cuja renda per capita cresce de forma ininterrupta desde 1990.
Aviso aos desavisados: a Austrália é um país produtor de commodities, que tem como principal destino para esses bens a exportação.
Dizendo de outra forma, trata-se de um país com elevado grau de abertura econômica, que exporta bens primários e importa bens industrializados. E, como é possível verificar, cresce muito! E é um país desenvolvido e de renda alta já faz certo tempo. O australiano é 3 a 4 vezes mais rico que o brasileiro.
É um bom exemplo, mas vamos tratar do caso em termos gerais. Um excelente diagnóstico sobre a situação foi apresentado no texto Abertura Comercial para o Desenvolvimento Econômico, elaborado pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República[4].
Vamos nos concentrar nos gráficos apresentados no relatório citado:
O primeiro gráfico mostra a situação do Brasil em relação a outros países quando comparado o quanto as exportações representam em relação ao PIB. Países que exportam muito, naturalmente, possuem alto valor nessa relação. Como é possível notar, o Brasil exporta pouco em relação ao PIB. E países com baixa relação, como o Brasil, tendem a apresentar baixa renda per capita.
O segundo gráfico mostra que países com políticas de proteção comercial (como o Brasil) acabam exportando menos. Assim, tendem a apresentar menor renda per capita.
O terceiro gráfico mostra que países que promovem políticas de liberalização comercial tendem a crescer mais após a adoção dessas políticas (3,3% a.a. versus 1,3% a.a.).
Resumindo, adotar políticas de liberalização comercial, que incentivem o aumento da relação exportações/PIB podem promover crescimento econômico e melhora na situação econômica.
O próprio Brasil já fez isso. O gráfico abaixo explicita essa situação e mostra que nosso país apresentou aumento na produtividade do trabalho no período que adotou políticas de liberalização comercial, nos anos 90:
E, como sabemos, mais produtividade significa mais crescimento econômico e mais renda para os brasileiros.
Conclusão
É hora de concluir.
Em resumo, nosso manifesto defende a ideia de melhoria na qualidade de vida do brasileiro via comércio internacional. O acordo entre Mercosul e União Europeia tem chances reais de ajudar no crescimento econômico brasileiro pela melhor utilização de nossas vantagens comparativas.
Temos muito a ganhar com esse acordo de livre comércio! Será possível exportar mais dos bens que somos mais produtivos (elevando nossa produtividade e renda), assim como importar bens em que outros países possuem vantagens e qualidades.
O argumento da “proteção da indústria nacional” é usada no Brasil desde a década de 30 do século passado e gerou mais perdas do que ganhos (irei tratar desse assunto em texto posterior).
Precisamos é de concorrência!
Por vinhos franceses e carros alemães no Brasil já!!!!
[1] https://twitter.com/cirogomes/status/1145022792531947520
[2] Inspirado no magistral texto de Paul Krugman “Ricardo’s Difficult Idea”. Disponível em https://web.mit.edu/krugman/www/ricardo.htm
[3] Os números são hipotéticos e servem para explicar o racional da ideia.
[4] Disponível em http://www.secretariageral.gov.br/estrutura/secretaria_de_assuntos_estrategicos/publicacoes-e-analise/abertura_comercial_para_o_desenvolvimento_economico.pdf