A delação premiada da JBS e o crime de insider trading
Aviso: As opiniões contidas neste artigo são estritamente pessoais e não guardam nenhuma relação com a Comissão de Valores Mobiliários, instituição em que trabalho.
Olá pessoal, tudo bem?
Tentei escrever este artigo no "calor da emoção" provocado pelos fatos. Mas, fiquei sem internet nestes últimos dias e, por isto, não consegui. Mas, antes tarde do que nunca! (risos…)
Todos sabem do momento político em que passa nosso país. E, presumo que todos também ficaram sabendo da delação premiada realizada pelos irmãos Batista (Joesley e Wesley), acionistas controladores e conselheiros de administração da JBS, e outros administradores da Companhia, homologada pelo Ministro do STF Luiz Edson Fachin.
À parte toda repercussão política, econômica, moral, institucional e criminal, o objetivo deste artigo é discutir um tema divulgado pela mídia após a hecatombe provocada pela delação: a venda de 32 milhões de ações da JBS pelos irmãos Batista às vésperas da divulgação da colaboração premiada.
SE realmente ocorrido o fato como noticiado pela mídia (atenção ao SE, pois o artigo trata de uma hipótese ainda não comprovada), podemos estar diante de uma negociação com valores mobiliários em período vedado, prática conhecida no mercado financeiro como insider trading.
Nos tópicos a seguir será apresentado o caso como noticiado pela mídia, os pontos da legislação e regulação a respeito e o papel da CVM e do Ministério Público Federal. Importante destacar que o assunto é complexo, mas as linhas que seguem procuram "clarear" o tema. Neste sentido, optei por utilizar uma linguagem leve e evitar o "juridiquês" aplicado a matéria. Perdemos um pouco em profundidade e técnica, mas ganhamos em compreensão.
Bom, vamos lá…
O caso concreto
Após a revelação do conteúdo da delação premiada na JBS, alguns veículos de mídia noticiaram que “os irmãos Joesley e Wesley Batista venderam quase 32 milhões de ações da companhia, um total de R$ 328 milhões. Do outro lado do negócio, sem a menor ideia da bomba que viria, o maior comprador do lote dos irmãos era — você acertou — a própria JBS, isto é, o dinheiro de todos os seus acionistas, incluindo o BNDES. A empresa comprou 19,3 milhões de suas ações no mês em que os irmãos venderam.”[1]
O Jornal Valor Econômico publicou a informação com o mesmo teor:
“Já a venda de ações da JBS pelos controladores aconteceu em abril, quando a delação já estava em andamento. Na ponta compradora, estava a própria companhia. Os controladores da JBS venderam o equivalente a R$ 327,4 milhões em ações da empresa durante o mês de abril, nos dias 20, 24, 25, 26, 27 e 28 – um total de 31,8 milhões de papéis. De 24 a 27 de abril, a tesouraria da JBS comprou 19,3 milhões de ações da própria empresa – perto de R$ 200 milhões”[2].
Após a divulgação da delação, que aconteceu no início da noite de quarta-feira (17.05.17), as ações da JBS S.A caíram 9,68% no pregão de 18.05.17. O ativo JBSS3 (ações ON da JBS S.A.) fecharam no valor de R$ 9,50 em 17.05 e abriram, em 18.05, no valor de R$ 8,10 (variação negativa de 14,7%). Na mínima do dia, a ação chegou a valer R$ 7,63, ou seja, apresentou variação negativa de aproximadamente 20%.
Fazendo uma conta de “papel de pão“ pelo valor médio da ação da JBS em 18.05 (R$ 8,26), é possível inferir que uma perda de aproximadamente R$ 64,7 milhões foi evitada como estes negócios, da forma em que foram divulgados pela mídia. O racicínio é simples: na expectativa de uma queda acentuada no valor de mercado da Companhia, os irmãos Batista venderam uma parcela de ações que detinham antes do valor da ações cair.
Legislação e regulação
Visto o caso como noticiado pela mídia, chegamos a um ponto crucial: as normas que regem o mercado de capitais (Lei 6.385/76, Lei 6.404/76 e Instrução CVM 358/02) vedam este tipo de prática. Mas, não é só isto: além da vedação, tal prática é considerada crime contra o mercado de capitais.
Vamos iniciar pelo artigo 155, §1º, da Lei 6.404/76:
Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:
(…)
§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.
O trecho grifado institui a vedação ao insider trading, ou seja, a proibição ao administrador de companhia aberta (que o é caso da JBS S.A.) em valer-se de informação ainda não divulgada ao mercado para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante negociação de valores mobiliários emitidos pela companhia.
Em tese, a delação premiada realizada pelos irmãos Batista é a “informação não divulgada ao mercado”, que permaneceu com este status até 17.05.17, e a perda evitada de aproximadamente R$ 64,7 milhões trata-se da vantagem percebida mediante a negociação com valores mobiliários.
Ainda em tese, é simples de deduzir que estes negócios que trouxeram vantagem financeira aos irmãos Batista só foram realizado mediante a utilização de informação privilegiada, ainda não divulgada ao mercado (sem esta informação, provalvemente, tais negócios não seriam realizados). Ou seja, trata-se de insider trading.
Por sua vez, o art. 27-D da Lei 6.385/76 considera a referida prática como crime contra o mercado de capitais:
Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários: (Artigo incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)
O texto do dispositivo é claro: a prática de insider trading é crime com pena de reclusão, de 1 a 5 anos, e multa de até 3 vezes o montante da vantagem ilícita obtida. Se considerarmos a perda de R$ 64,7 milhões evitada, a multa no caso em questão pode chegar a R4 194 milhões.
Adicionalmente, na esfera administrativa, a CVM editou a Instrução 358/02, que estabelece em seu artigo 13 o seguinte:
Art. 13. Antes da divulgação ao mercado de ato ou fato relevante ocorrido nos negócios da companhia, é vedada a negociação com valores mobiliários de sua emissão, ou a eles referenciados, pela própria companhia aberta, pelos acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, ou por quem quer que, em virtude de seu cargo, função ou posição na companhia aberta, sua controladora, suas controladas ou coligadas, tenha conhecimento da informação relativa ao ato ou fato relevante.
O presente dispositivo, além de estabelecer vedação à negociação com valores mobiliários emitidos pela companhia pelos seus administradores (e outros citados) antes da divulgação de fato relevante (delação premiada) que tenham conhecimento, admite, “nas situações ali descritas, da prova indireta mediante presunção simples, também denominada presunção judicial ou prova indiciária, a qual não se confunde com a presunção legal.”[3]
Dito de uma forma mais simples, na esfera administrativa é possível o órgão regulador (CVM) presumir que os administradores da JBS sabiam da informação ainda não divulgada ao mercado quando negociaram e utlizaram nas negociações a fim de obter vantagem indevida.
Pode parecer um mero detalhe no caso em questão, mas, na prática, esta possibilidade representa importante instrumento que a CVM detém para coibir a prática de insider trading no mercado de capitais. Caso comprovada a prática pelos irmãos Batista, o referido "instrumento" facilita a imposição de penalidades na seara administrativa, que podem ser multa, inabilitação temporária, até o máximo de vinte anos, para o exercício do cargo de administrador de companhia aberta e outras.
A CVM e o MPF
A função da CVM no caso de insider trading já deve ter ficado clara neste ponto. Como órgão regulador do mercado de capitais, cabe à Comissão de Valores Mobiliários penalizar os adeptos da prática ilícita.
Se comprovada a prática de insider trading pelos irmãos Batista (infração aos dispositivos legais e normativos citados), os mesmos podem ser penalizados, na esfera administrativa, com multa que pode chegar a 3x o valor da vantagem obtida, além de inabilitação temporária, até o máximo de vinte anos, para o exercício o cargo de administrador de companhia aberta e outras possíveis.
Mas, há um aspecto adicional e crucial neste caso: a participação do Ministério Público Federal (MPF).
Quando a área técnica da CVM formula a acusação pelo crime de insider trading e remete o caso à Diretoria Colegiada para julgamento, o Ministério Público Federal é notificado para oferecer denúncia criminal em relação ao ocorrido.
Ou seja, o MPF irá fazer a acusação criminal em relação ao caso e a CVM irá figurar como assistente de acusação e o caso será julgado pela justiça federal.
A título de exemplo, a primeira sentença penal condenatória por insider trading no Brasil ocorreu em 2011. Neste caso, foram condenados à pena privativa de liberdade e multa Luiz Gonzaga Murat Júnior, ex-Diretor de Finanças e Relações com Investidores, e Romano Ancelmo Fontana Filho, ex-membro do conselho de administração, ambos da Sadia S.A.[4]
Conclusão
O presente caso merece destaque, não só pelos efeitos políticos, econômicos e sociais que irá acarretar em nosso país, mas também por possibilitar um avanço institucional no mercado de capitais, caso as atividades praticadas sejam identificadas como crimes contra o mercado de capitais e penalizadas.
Em resumo, se constatados os fatos aqui narrados, os irmãos Batistas podem ter praticado o crime de insider trading ao negociar com valores mobiliários emitidos pela companhia por eles controlada e administrada, com a finalidade de obter vantagem indevida (no caso, evitar uma perda financeira significativa).
E, como também anotado, o presente ato comporta penalidade administrativa (imputada pela CVM) e penal, com denúncia oferecida pelo MPF com assistência da CVM.
É isso, pessoal!
Abraços
Vicente Camillo
[2] http://www.valor.com.br/agro/4973756/cvm-investiga-compra-de-dolares-e-venda-de-acoes-pelo-frigorifico
[3] Excerto do voto do Diretor Relator Pablo Renteria no PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
CVM nº RJ2011/3823. Disponível em http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/sancionadores/sancionador/anexos/2015/20151209_PAS_RJ20113823.pdf