De quem é a competência para julgar lides entre servidores públicos e entes públicos? Da Justiça Comum ou da Justiça do Trabalho?
Olá turma, como estão os estudos?
Estamos aqui para comentar um tema que consideramos importante, principalmente para aqueles que têm como foco cargos em procuradorias públicas (municipais, estaduais ou federais).
Trata-se do constante debate acerca da competência para julgar disputas envolvendo servidores e entes públicos.
A relevância dessa temática é extraída do grande número de casos que chegam aos Tribunais Superiores abordando esse problema. Em processos movidos por servidores públicos, é comum a alegação de incompetência do órgão julgador, sendo que, após o juízo originário reconhecer sua competência, as procuradorias públicas costumam buscar a mudança de entendimento junto ao STF.
Como exemplo, apenas nos últimos 2 (dois) anos, podem ser citados os seguintes casos analisados pelo STF, além de outros: Rcl 56411 AgR/2023, Rcl 44.778 AgR/2022, Rcl 46.640 AgR/2021 e Rcl 49.383/2022.
Nesse contexto, não seria estranho esse assunto ser exigido, por exemplo, numa prova de segunda fase de concurso para procurador.
Então, vamos à luta!
Sabe-se que conceituação e classificação em direito administrativo é algo atribuído muitas vezes à doutrina e, em geral, cada autor tem as suas. Assim, quanto ao conceito e à classificação dos servidores públicos, adotamos a categorização da Maria Z. Di Pietro, a qual, notoriamente, tem sido cobrada com frequência em concursos públicos1.
Após a CF/88, conforme elucida a referida doutrinadora, costuma-se classificar os servidores públicos como uma espécie do gênero agente público, o qual engloba ainda os militares, os agentes políticos, os empregados públicos e os particulares em colaboração com o Poder Público.
Ainda conforme a grande Di Pietro2, os servidores públicos constituem um grupo de pessoas físicas que mantêm relação profissional com a Administração Pública direta ou indireta, ocupando cargos, funções ou empregos públicos criados por lei e sendo remunerados pelo erário, podendo ser divididos em 3 (três) subespécies: estatutários, trabalhistas e temporários.
O critério para diferenciar esses subgrupos é a natureza do vínculo existente entre o servidor e o Poder Público. Sendo esse vínculo um estatuto, materializado em lei específica do ente público, que regulamenta a ocupação de cargos públicos efetivos ou comissionados, estaremos diante de um servidor estatutário.
Se o vínculo for regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), haverá o servidor trabalhista, também chamado de empregado público. Por fim, caso o vínculo entre servidor e Poder Público seja regulamentado por lei específica que trata sobre a ocupação de determinadas funções em caráter temporário, por razões excepcionais, estaremos diante do servidor público temporário.
Essa diferenciação, apesar de relativamente simples, tem muita importância para se entender a discussão sobre a competência para o exame de demandas judiciais propostas por servidores públicos, em sentido amplo, em desfavor do Poder Público.
Mas, antes de adentrar ao cerne da discussão, consideramos importante rememorar o conceito de competência jurisdicional, que é fundamental para entendermos as questões que chegam aos Tribunais Superiores envolvendo essa temática.
Classicamente, competência é a medida da jurisdição. Nas palavras de Athos Gusmão Carneiro3: “Todos os juízes exercem jurisdição, mas a exercem numa certa medida, dentro de certos limites. São, pois, ‘competentes’ somente para processar e julgar determinadas causas. A ‘competência’, assim, ‘é a medida da jurisdição’, ou ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz.”
Ademais, a discussão em torno da competência da Justiça Comum e da Justiça do Trabalho é importante porque aborda competência material e, portanto, de natureza absoluta, a qual, se afrontada, pode ser reconhecida em qualquer grau de jurisdição, o que não raro acontece até mesmo perante o STF, em sede de recurso extraordinário ou reclamação, ensejando o retorno dos autos à primeira instância, em claro prejuízo à razoável duração do processo.
Assim, é fundamental definir, logo no início do processo, qual a medida da jurisdição da Justiça Comum e da Justiça Trabalhista acerca das lides envolvendo servidores públicos e Estado, o que nem sempre é intuitivo na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Essa dificuldade deriva, segundo os ensinamentos de Carlos H. Bezerra Leite4, da redação dos arts. 39 e 114 da CF/88, tanto a originária, quanto a atribuída pelas EC n. 19/1998 e 45/2004, respectivamente, sendo que esta última teve por objetivo explícito ampliar a competência da Justiça Trabalhista.
Concordando com o insigne doutrinador, acrescentamos apenas que a dificuldade da discussão também decorre da existência de vários órgãos diferentes que podem decidir sobre quem julga a lide entre servidor público e Estado (princípio da kompetenz-kompetenz), além do STF, como os juízes e tribunais do trabalho de todas as instâncias e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de incidente de conflito de competência entre órgãos judiciais ordinários da Justiça do Trabalho e da Justiça Comum (art. 105, I, “d”, da CF/88).
Ademais, as várias exceções criadas pelo STF, a quem cabe unificar os entendimentos dissonantes, segundo determinadas circunstâncias fáticas, também colaboram para a maior dificuldade em saber de quem é a competência para julgar lides entre servidores e entes públicos.
Pois bem, como regra geral, o STF tem adotado o critério da natureza do vínculo entre servidor e o Estado a fim de decidir a Justiça competente para julgar lides em que a parte autora, servidor público lato sensu, pretende a satisfação de direitos em desfavor do ente estatal, por força de anterior relação profissional havida entre eles.
Mas existem várias exceções. Por didática, vamos expor a análise conforme o subgrupo outrora referido.
a) por regra, o STF considera ser competente a Justiça Comum, podendo ser a estadual, se o vínculo existiu ou ainda existe com Estado ou município, ou a federal, se o vínculo ocorreu com a União, desde que se pretenda direitos relativos ao período de vigência do estatuto, afastando do art. 114, I, da CF/88 qualquer interpretação que inclua no conceito de relações de trabalho o vínculo estatutário entre servidor e Poder Público (ADI 3399).
b) por exceção, o STF considera competente a Justiça do Trabalho, mesmo em se tratando de servidores públicos estatutários na época da propositura da ação, caso busquem direitos referentes a período em que sua relação com o Poder Público era regida pela CLT, antes da vigência da lei específica que estabeleceu o estatuto funcional (STF. Repercussão Geral – Tema n. 928).
c) o STF também considera competente a Justiça do Trabalho para a ação civil pública que discute saúde e segurança no meio ambiente do trabalho, ainda que possa beneficiar servidores estatutários, desde que também possam favorecer categorias de profissionais celetistas (terceirizados, por exemplo), por aplicação da sua Súmula n. 736 (“Compete à justiça do trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”). Esse foi o entendimento vencedor no julgamento da Rcl n. 20.744 AgR/2016. Nesse ponto, é curioso notar que, se a demanda discutir saúde e segurança do trabalho, mas tiver natureza individual, sendo a parte autora servidora estatutária, a competência volta a ser delimitada conforme a regra, cabendo seu julgamento à Justiça Comum (Rcl 43.741 AgR/2021).
d) a competência será da Justiça Comum ainda que se objetive, com a demanda, a declaração de nulidade do vínculo estatutário firmado e o deferimento de consequências financeiras daí oriundas com base na legislação trabalhista (ARE 1179455 AgR/2020).
e) a Justiça Comum também será competente para “causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores submetidos a regime especial disciplinado por lei local editada antes da Constituição Republicana de 1988” (STF. Repercussão Geral – Tema 43).
a) como regra, o Supremo entende que a competência será da Justiça do Trabalho, para as causas envolvendo essa categoria e o Poder Público, nas quais se busca direitos referentes ao período antigo ou atual regido pela CLT, ainda que se trate de ente empregador da Administração Pública direta ou indireta (STF. ARE 1311628 AgR-AgR/2022).
b) também será competência da Justiça laboral as ações promovidas por servidores públicos que ingressaram nos quadros estatais antes da CF/88, sem concurso público, tendo seu vínculo regulamentado pela CLT (STF. Repercussão Geral – Tema 853).
c) a competência será da Justiça Trabalhista ainda que se objetive, com a demanda, a declaração de nulidade do vínculo celetista firmado com o Poder Público e o deferimento da consequências financeiras daí oriundas (STF. ARE 859282 AgR/2018).
d) entretanto, o STF entende que é competente a Justiça Comum em demandas “ajuizadas por candidatos e empregados públicos na fase pré-contratual, relativas a critérios para a seleção e a admissão de pessoal nos quadros de empresas públicas” (STF. Repercussão Geral – Tema 992).
e) ademais, o STF também atribui competência à Justiça Comum, em que pese o vínculo laboral existente entre o servidor e o ente público, na específica hipótese tratada no tema de repercussão geral n. 606, no qual se julgou mandado de segurança questionando ato de demissão de empregado público, em decorrência de sua aposentadoria espontânea, “quando reconhecido, na decisão atacada, envolvimento de ato de autoridade federal e formalizada a sentença de mérito antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004”5.
a) em regra, o STF tem considerado que servidor público temporário, assim como o servidor estável ocupante de cargo público, também deve ser considerado estatutário. Assim, havendo lei específica do ente público regulamentando a relação entre temporário e Administração Pública, a competência para dirimir eventuais lides será da Justiça Comum; sendo o vínculo temporário regido pela CLT, a competência será da Justiça Laboral (STF. ARE 1179455/2020 AgR e STJ. AgInt no CC 168401/2022).
Enfim, senhoras e senhores estudantes, como regra geral a ser memorizada, podemos concluir que, havendo disputa entre servidor público lato senso e o Estado na condição de “patrão”, não importa a natureza do ente público interessado, deve-se olhar a natureza jurídica do vínculo profissional existente entre as partes, a fim de estabelecer a Justiça competente para julgar o caso:
Porém, as particularidades acima expostas merecem um esforço maior na hora do estudo, principalmente se o foco estiver em provas mais avançadas de procuradorias (segunda e/ou terceira fase).
Forte abraço e boa sorte.
1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 741 da versão digital.
2 Idem.
3 Jurisdição e Competência. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 22.
4 Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 286.
5 BRASIL. STF. RE 655.283 – Órgão julgador: Tribunal Pleno; Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO; Julgamento: 15/03/2021; Publicação: DJ-e de 27/04/2021.
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