A base de cálculo do ITBI segundo a jurisprudência do STJ
Olá turma, como estão os estudos? Estamos aqui para comentar um caso importante julgado pelo STJ referente à diferença entre as bases de cálculo do ITBI e do IPTU.
Conforme a doutrina especializada[1], a obrigação tributária surge a partir da ocorrência, no mundo dos fatos, de determinada situação hipotética prevista em lei em sentido estrito, a qual é denominada, em geral, de fato gerador.
O fato gerador, por sua vez, possui determinados aspectos fáticos, os quais autorizam a conclusão de sua ocorrência “in concreto”. A doutrina[2] aponta que, “Para efeitos didáticos a hipótese de incidência pode ser cindida em cinco aspectos ou critérios: no antecedente, figuram os aspectos material, espacial, e temporal; no consequente, os critérios pessoal e quantitativo”.
No aspecto quantitativo da consequente do fato gerador, encontramos as alíquotas e a base de cálculo dos tributos, que permitem aferir a quantia que deve ser desembolsada pelo sujeito passivo da obrigação tributária em favor do fisco.
Nesse sentido, a base de cálculo destina-se a mensurar a expressão econômica do fato gerador[3].
Analisaremos, neste pequeno texto, uma significativa divergência relacionada à base de cálculo de dois impostos diferentes (ITBI e IPTU), que, por ora, foi resolvida pelo Superior Tribunal de Justiça.
A confusão entre a base de cálculo do ITBI e a do IPTU decorre da positivação, em lei, da mesma expressão para representar esse vetor da norma tributária de ambos os impostos: o “valor venal”.
De fato, o art. 38 do CTN, ao tratar do ITBI, anuncia que “A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos”.
O mesmo Código Tributário, referindo-se ao IPTU, positiva que “A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel”.
Nesse contexto, surgiu uma divergência na doutrina e na jurisprudência nacionais acerca do significado da expressão “valor venal”.
Para uma determinada corrente, o valor venal, para fins de incidência do ITBI, deveria ter significado equivalente ao valor venal previsto como base de cálculo do IPTU.
Outro entendimento, largamente aplicado pela Administração Pública tributária de todo o país, diferenciava as expressões no momento de sua mensuração, de modo que o valor venal do imóvel, para fins de incidência do IPTU, seria calculado de uma forma (Planta Genérica de Valores aprovada mediante lei municipal em sentido formal).
Por outro lado, o valor venal do ITBI seria calculado de outra maneira, tendo por parâmetro o denominado “valor venal de referência”.
O Superior Tribunal de Justiça debruçou-se acerca dessa divergência, fixando entendimento que, em certa medida, privilegia a segunda corrente doutrinária, que diferencia o significado da expressão “valor venal” conforme se refira ao IPTU ou ao ITBI. Entretanto, simultaneamente, o STJ afastou a possibilidade de uso do chamado “valor venal referência”.
Vejamos as justificativas apresentadas pelo STJ.
O valor venal do imóvel: diferenças entre ITBI e IPTU
O ITBI é o imposto de transmissão de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis entre pessoas vivas, previsto no art. 156, II, da Constituição Federal (CF), sendo de competência dos municípios.
O IPTU, por sua vez, é o imposto sobre propriedade predial e territorial urbana, positivado no art. 156, I, da CF também como um tributo de competência dos municípios.
Conforme visto acima, no Código Tributário, o ITBI está previsto nos arts. 35 a 42. O IPTU está positivado nos arts. 32 até 34. Para ambos, o CTN previu como base de cálculo o “valor venal” do bem (arts. 33 e 38).
Nesse contexto, o mesmo município previa, em atos normativos diferentes, fórmulas de cálculo diversas para quantificar o valor venal do bem imóvel, a depender se funcionaria como expressão econômica para incidência do IPTU ou do ITBI, o que ensejou a divergência doutrinária e jurisprudencial acima mencionada.
Forma de apuração do valor venal
Conforme visto acima, o STJ foi chamado a resolver a divergência relacionada ao significado da expressão valor venal, que possui importantes efeitos práticos, sendo que, sob o rito dos recursos repetitivos, nos autos do REsp n. 1.937.821/SP[4], julgado em 24/2/2022, respondeu a duas questões:
- a base de cálculo do ITBI está necessariamente vinculada à do IPTU?
- é legítimo o uso do denominado “valor venal de referência”, previamente fixado pelo fisco municipal, como parâmetro de fixação da base de cálculo do ITBI?
A primeira pergunta foi respondida negativamente pela Corte da Cidadania.
Para tanto, o STJ considerou que o ITBI e o IPTU, apesar de serem titularizados pelo mesmo ente federativo (município) e de terem a mesma expressão legal conceituando seus respectivos fatos geradores (valor venal), possuem diferenças significativas em relação ao fato gerador e à forma de lançamento, as quais justificam a diferenciação entre os valores de bases de cálculo.
O lançamento tributário
Segundo a doutrina especializada[5], o lançamento tributário é “o modo de formalização do crédito tributário” oriundo da ocorrência de determinado fato gerador, podendo ocorrer de três modos: por declaração, por homologação ou de ofício.
No lançamento mediante declaração, o sujeito passivo fornece ao sujeito ativo (Fisco) as informações necessárias para que o próprio Fisco apure a existência e o valor do crédito tributário, sendo que, após esse cálculo, o sujeito passivo é notificado para quitar o débito[6].
O lançamento por homologação impõe que o próprio contribuinte apure e pague o tributo, devendo o Fisco apenas homologar essa apuração e pagamento, se corretamente realizados pelo sujeito passivo[7].
De ofício[8] é o lançamento realizado exclusivamente pelo Fisco, que averigua a existência e o valor do crédito tributário e, posteriormente, apenas notifica o sujeito passivo para efetuar o pagamento.
O fato gerador do ITBI e sua forma de lançamento
O STJ entendeu[9] também que o ITBI, nos termos do art. 35 do CTN, tem como fato gerador “a transmissão da propriedade ou de direitos reais imobiliários ou a cessão de direito direitos relativos a tais transmissões”, a qual é juridicamente efetivada mediante um negócio jurídico entre pessoas vivas.
Considerando esse fato gerador, o lançamento tributário do ITBI, ainda segundo o STJ, pode ocorrer somente por declaração ou por homologação, sendo vedado ao município, antes de qualquer conduta do sujeito passivo, realizar o lançamento de ofício por meio da aplicação do “valor venal de referência”.
O STJ decidiu assim porque várias circunstâncias podem influenciar no valor de transmissão do imóvel, as quais são de conhecimento, a priori, apenas dos negociantes.
Portanto, a expressão “valor venal” contida no art. 38 do CTN, para fins de ITBI, deve ser entendida como o valor considerado no negócio jurídico havido entre as pessoas vivas, em condições normais do mercado imobiliário, o qual, entretanto, não pode ser dimensionado apenas de maneira objetiva, com base em um preço médio.
Com efeito, o valor da transmissão do imóvel efetivamente ocorrida pode levar em consideração muitas variáveis que elevam ou diminuem o preço a ser pago pelo adquirente, como, por exemplo, a existência de benfeitorias, o estado de conservação do imóvel, as necessidades pessoais do vendedor (quitar despesas urgentes, mudança de endereço etc) e do comprador (proximidade com trabalho ou familiares etc).
Nesse contexto, a fim de privilegiar o princípio geral da boa-fé, juridicamente presumida também no Direito Tributário, deve-se admitir que o valor do negócio jurídico realizado reflete o efetivo valor venal do imóvel em condições normais do mercado imobiliário.
Caso identifique indícios de que o valor do negócio declarado pelo sujeito passivo não condiz com a realidade, o Fisco deve recusar sua chancela, no caso de lançamento por homologação, ou, sendo o lançamento por declaração, instaurar procedimento administrativo, com contraditório e ampla defesa, a fim identificar a quantia adequada a expressar o valor venal do imóvel objeto da transmissão, nos termos dos arts. 147 e 148 do CTN:
- Art. 147. O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação.
- Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.
O fato gerador do IPTU e sua forma de lançamento
Por sua vez, o IPTU tem como fato gerador a propriedade do imóvel, sendo lançado de ofício, uma vez que o valor da propriedade, para fins de incidência do IPTU, pode ser apurado mediante Planta Genérica de Valores estabelecida mediante lei em sentido estrito do município, considerando apenas variáveis objetivas, como, por exemplo, a localização e a metragem do bem.
É assim porque o IPTU é classificado como um imposto real, que “considera a propriedade de um imóvel isoladamente”[10].
Com efeito, o valor venal do imóvel, para fins de incidência do IPTU, “não é verificado imóvel a imóvel e sim presumido conforme tabelas chamadas ‘Planta Fiscal de Valores’, que definem o valor do metro quadrado conforme a localização, a natureza e o nível da construção”[11].
Ademais, a utilização dessas plantas fiscais é necessária “no contexto de praticabilidade tributária”, pois auxiliam na fixação da base de cálculo do IPTU[12].
As diferenças entre o ITBI e o IPTU
O ITBI, conforme entendido pelo STJ, tem base de cálculo que considera “o valor de mercado do imóvel individualmente considerado, que, como visto, resulta de uma gama maior de fatores, motivo pelo qual o lançamento desse imposto se dá, originalmente e via de regra, por declaração do contribuinte, ressalvado o direito da fiscalização tributária de revisar o quantum declarado, por meio de regular instauração de processo administrativo”[15].
Nesses termos, sendo diferentes os fatos geradores e a forma de lançamento, o valor venal do imóvel transmitido, para fins de incidência do ITBI, não pode ser equivalente ao valor venal do imóvel objeto do direito de propriedade tributado pelo IPTU, conforme entendeu o STJ no referido julgado repetitivo.
Ainda segundo decidido pelo STJ, o valor venal do IPTU não pode configurar sequer um piso para a aferição do valor venal para fins de ITBI.
Vedação ao uso do valor venal de referência
Ainda considerando a forma de lançamento e o fato gerador do ITBI, o STJ entendeu, no mesmo julgado repetitivo acima citado, que o Fisco municipal não pode utilizar o denominado “valor venal de referência”, definido previamente, como parâmetro de fixação da base de cálculo do ITBI.
De fato, nos termos do entendimento do STJ, se o lançamento do ITBI ocorre, a priori, somente por declaração ou por homologação, o Fisco não pode impor ao contribuinte o valor do crédito a ser recolhido, pois, fazendo assim, estaria a Administração Tributária lançando o ITBI de ofício, amparada em critérios por ela escolhidos unilateralmente que expressam apenas um valor médio e estimativo do bem.
Nesse contexto, o Fisco estaria desprezando a declaração das parte negociantes acerca do valor entabulado, o qual, porém, goza de boa-fé presumida.
Além disso, o Fisco estaria invertendo o ônus da prova quanto ao valor correto do negócio jurídico, em afronta ao procedimento instituído pelo art. 148 do CTN.
Nesses termos, a base de cálculo do ITBI é o valor venal do bem em condições normais do mercado imobiliário de determinada região, o qual pode sofrer alterações conforme as peculiaridades de cada negócio, sendo presumível, com base no princípio da boa-fé, que o valor de mercado do bem é aquele declarado pelo contribuinte ao Fisco como sendo o valor da transação.
O valor declarado pelo contribuinte pode ser afastado pela Administração Tributária, mediante processo administrativo (art. 148 do CTN) ou recusa de homologação ao pagamento previamente efetuado pelo contribuinte.
A base de cálculo do ITBI: conclusão
Em conclusão, podemos sintetizar o entendimento do STJ nos seguintes termos: o valor venal do bem transferido, para fins de incidência do ITBI, não está vinculado ao valor venal do imóvel – nem mesmo como um piso –, para fins de incidência do IPTU, sendo vedado o uso do chamado “valor venal de referência”, apurado previamente e de modo unilateral pelo Fisco, para a definição da base de cálculo do ITBI. Presume-se correto o valor da transação informado pelo contribuinte ao Fisco.
[1] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 4. Ed., 2013. P. 219.
[2] Idem, p. 227.
[3] Ibidem, p. 223.
[4] REsp n. 1.937.821/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 24/2/2022, DJe de 3/3/2022.
[5] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. São Paulo: Saraiva, 11. Ed., 2020. P. 396.
[6] Idem, p. 396.
[7] Ibidem, p. 396.
[8] Ibidem, p. 396.
[9] REsp n. 1.937.821/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 24/2/2022, DJe de 3/3/2022.
[10] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. São Paulo: Saraiva, 11. Ed., 2020. P. 535.
[11] Idem, p. 536.
[12] STF. ARE 1245097 RG, Relator(a): MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/2020, DJe de 28/04/2020.
[13] Segundo o princípio da praticabilidade da tributação, é necessário que as leis tributárias sejam concretizáveis, permitindo a apuração dos créditos, municiando o Fisco de mecanismos que reduzem o inadimplemento e a sonegação, bem como facilitem e assegurem a fiscalização e a cobrança (PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. São Paulo: Saraiva, 11. Ed., 2020. P. 118). Por isso, segundo o STF[14], a base de cálculo do IPTU pode ser determinada por meio das referidas plantas fiscais, como uma forma de efetivar a praticabilidade da tributação.
[14] STF. ARE 1245097 RG, Relator(a): MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/2020, DJe de 28/04/2020.
[15] REsp n. 1.937.821/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 24/2/2022, DJe de 3/3/2022.