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Aplicação do princípio da insignificância no inquérito policial

O princípio da insignificância decorre do aspecto de intervenção mínima do Direito Penal brasileiro, mormente demonstrado pelos seus axiomas de fragmentariedade, lesividade e subsidiariedade. Como decorrência dessas características, a consideração abstrata de um fato como criminoso e a sua possível punição na esfera penal somente têm espaço no ordenamento jurídico pátrio quando, e apenas se, absolutamente necessário à tutela dos bens jurídicos de maior relevância.

Nesse contexto, de especial relevo é a análise da tipicidade de determinados atos humanos (anteriormente a um juízo de consideração acerca de sua ilicitude e culpabilidade). Tipicidade essa não limitada à mera tipicidade formal (subsunção do fato a uma norma penal incriminadora), mas também à sua antinormatividade (ato não fomentado ou permitido pelo ordenamento jurídico) e tipicidade material (ofensa de suficiente gravidade a um bem jurídico), que integram, as últimas duas, o conceito amplamente aceito de tipicidade conglobante.

É justamente no campo da tipicidade material que incide o princípio da insignificância. Atos que, a priori, poderiam se encaixar como crimes em decorrência da sua adequação ao tipo penal, poderiam, ao mesmo tempo, carecer de qualquer ofensividade relevante ao respectivo bem jurídico. Em não se perfazendo a tipicidade do ato pela ausência do seu caráter material, não haverá se falar em ‘crime’, pela falta de um dos seus elementos inexoráveis.

Decorrente que é (o princípio) de uma construção histórica, doutrinária e jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal houve por bem fixar critérios que balizem a aplicação (ou não) da ‘insignificância’ aos casos concretos. Para tanto, estabeleceu os seguintes vetores, de observação cumulativa:

  1. a mínima ofensividade da conduta do agente;
  2. a ausência de periculosidade social da ação;
  3. o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
  4. a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Pois bem. Não há qualquer dúvida de que o princípio da insignificância pode ser aplicado pelo magistrado ou tribunal quando verificada a presença dos aludidos vetores e se tratar de crimes que admitam a sua aplicação (tema que não constitui o escopo do presente material), de modo a culminar na absolvição do acusado.

Para além disso, convém ressaltar que doutrina e jurisprudência assinalam a possibilidade excepcional de trancamento do inquérito policial, dentre outros motivos, em razão da atipicidade do fato:

[…] Note-se que, no caso em exame, a conjuntura autoriza o trancamento da ação penal. A paciente, além de primária, está sendo acusada do furto de uma penca de bananas avaliada em dez reais, valor muito aquém dos 10% do salário mínimo atual. Ainda, tem-se que o alimento foi imediatamente devolvido ao estabelecimento comercial, e a paciente foi imediatamente demitida por justa causa.

Como bem asseverou o Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Jundiaí/SP, “… aceitar a imputação e dar prosseguimento ao inquérito policial consiste dispêndio desnecessário de energia e de capacidade técnica de todos os envolvidos (policiais, representante do Ministério Público, funcionário etc.), o que contraria o bom senso e o indispensável zelo pelas despesas do Estado.” (e-STJ, fl. 48).

[…] Ante o exposto, não conheço do habeas corpus. Porém, concedo a ordem, de ofício, para cassar o acórdão do TJSP (RESE 1004635-89.2019.8.26.0309) e restabelecer a decisão do Juízo de 1º grau, que determinou o trancamento do inquérito policial nº 1500467-84.2019.26.0309. […] (STJ – HC 534.784/SP – Min. Ribeiro Dantas. Dje 23/09/2019).

Mas e a autoridade policial? Poderia ela, no bojo do inquérito policial, ou ainda antes, no momento da prisão em flagrante, proceder à análise da tipicidade material do fato investigado e, em verificando a sua ausência, aplicar, sponte sua, o princípio da insignificância, deixando, por exemplo, de proceder à prisão em flagrante do agente?

Trata-se de um curioso tema que se coloca nos limites entre o Direito Penal e o Direito Processual Penal; até por essa razão é pouco discutido em doutrinas de ambos os ramos.

Para o STJ, a resposta é negativa. A análise quanto à insignificância ou não do fato seria restrita ao Poder Judiciário, em juízo, a posteriori. Cabe à autoridade policial o dever legal de agir em frente ao suposto fato criminoso. Este entendimento consta do Informativo 441 do STJ:

A Turma concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus a paciente condenado pelos delitos de furto e de resistência, reconhecendo a aplicabilidade do princípio da insignificância somente em relação à conduta enquadrada no art. 155, caput, do CP (subtração de dois sacos de cimento de 50 kg, avaliados em R$ 45). Asseverou-se, no entanto, ser impossível acolher o argumento de que a referida declaração de atipicidade teria o condão de descaracterizar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, ato a cuja execução o apenado se opôs de forma violenta. Segundo o Min. Relator, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Logo, configurada a conduta típica descrita no art. 329 do CP, não há de se falar em consequente absolvição nesse ponto, mormente pelo fato de que ambos os delitos imputados ao paciente são autônomos e tutelam bens jurídicos diversos. HC 154.949-MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 3/8/2010.

Repare, nesse contexto, que o caminho determinado em lei para o agente que comete conduta com o amparo de alguma excludente de ilicitude é a liberdade provisória vinculada, concedida pelo juiz, nos termos do art. 310 do CPP:

§ 1º Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 13.964, de 2019)

Então, numa visão estrita e literal do texto, aquele sujeito que comete uma conduta (em tese criminosa) em legítima defesa, por exemplo, deverá ser preso e autuado em flagrante; só depois, quando esse flagrante for encaminhado para o Poder Judiciário (art. 306, § 1º, CPP), é que o juiz poderá soltá-lo e, ainda assim, com uma liberdade provisória condicionada a comparecimento aos atos do processo. É rigor demais, pela lei, convenhamos!

Esse rigor tem como origem o próprio texto do CPP, sua essência. Em várias disposições, quando cuida da atuação da autoridade policial, o faz numa linguagem imperativa, cogente, sem dar margem a discricionariedades (arts. 6º, 304, § 1º, dentre outros). De um modo geral, construiu-se um raciocínio (também amparado na doutrina ortodoxa) no sentido de que ao delegado não é dado se imiscuir na atividade jurisdicional, não pode e não deve fazer grandes incursões no mérito dos fatos. Sua análise deve ser superficial e limitada.

Decerto que existe o receio também de que, em não sendo assim, limites de razoabilidade possam ser ultrapassados, gerando insegurança jurídica e descrédito ao sistema de persecução penal.

Esta orientação, contudo, não escapa de críticas mais recentes. Para Cleber Masson, o entendimento não se sustenta pelo fato de que um fato atípico para a autoridade judiciária também o seria para a autoridade policial, não havendo razão para se admitir essa vulneração dos princípios que informam o Direito Penal:

Com o devido respeito, ousamos discordar desta linha de pensamento, por uma simples razão: o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial.

Não se pode conceber, exemplificativamente, a obrigatoriedade de prisão em flagrante no tocante à conduta de subtrair um único pãozinho, avaliado em poucos centavos, do balcão de uma padaria, sob pena de banalização do Direito Penal e do esquecimento de outros relevantes princípios, tais como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da lesividade.

Para nós, o mais correto é agir com prudência no caso concreto, acolhendo o princípio da insignificância quando a situação fática efetivamente comportar incidência (Masson, 2017).

Em semelhante sentido expõem Salah H. Khaled Jr. e Alexandre Morais da Rosa:

Em outras palavras, deve o Delegado desempenhar papel condizente com a estrutura racional-legal de contenção do poder punitivo e para tanto, é natural que disponha de atribuição para fazer os juízos necessários ao sentido apropriado da tipicidade no marco contemporâneo: se o fato é atípico, não pode ensejar persecução penal e manutenção do indivíduo preso em flagrante em função de situação insignificante. E não basta ser formalmente típico. É preciso ser materialmente típico. Pensar o contrário é manter a postura de desconfiança para com a classe e, no fundo, sustentar uma qualidade melhor e hierarquicamente do Poder Judiciário (Juiz e Ministério Público).[1]

Corrobora a visão dos referidos juristas o fato de que a função precípua do inquérito policial é justamente evitar a instauração de ações penais descabidas e infundadas, conferindo-se ao dominus litis elementos de informação que lhe permitam (e, havendo justa causa e as demais condições, lhe exijam) o exercício da ação penal.

Impedir-se, sem qualquer critério para tanto, a possibilidade de uma análise técnica da autoridade policial a respeito da tipicidade do fato em sua inteireza, ao mesmo tempo em que se lhe exige a autuação em flagrante do agente e a levada a cabo de uma investigação sobre fato claramente irrelevante, é uma contradição à própria lógica da sistemática de persecução penal.

A Lei 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, permite e até determina ao delegado, no que se refere ao indiciamento, a análise técnico-jurídica do fato, por ato fundamentado. Note: é impossível fazer uma análise técnico-jurídica, como exige a lei, sem algum ingresso no mérito; pela lei, a análise quanto ao indiciamento não é meramente formal, vai além. Por que essa mesma análise não poderia ocorrer a nível de autuação e continuidade da investigação no que se refere à insignificância? É uma pergunta difícil de responder com amparo normativo.

E há mais. Como é cediço, os autos de inquérito a respeito de fato materialmente atípico fatalmente chegarão ao Ministério Público (tratamos da regra: ação penal pública incondicionada). Em continuidade à ilogicidade já iniciada, deverá o promotor de justiça oferecer denúncia contra o indiciado em atendimento ao princípio da obrigatoriedade, mesmo que convencido da sua atipicidade?

A resposta parece ser negativa. Estando o membro do Ministério Público convicto da ausência de um dos substratos do crime ou das condições da ação penal, poderá (deverá, em respeito à boa prática) promover o arquivamento do inquérito e deixar de oferecer a denúncia, invocando as razões que o conduziram a tal atitude.

Aliás, o art. 28 do CPP[2] representa claro mecanismo de controle ao princípio da obrigatoriedade, que não é absoluto. Com efeito, caso o magistrado discorde das razões invocadas pelo parquet para o arquivamento do caderno investigativo, deverá determinar sua remessa ao Procurador-Geral de Justiça para a tomada das medidas devidas:

Art. 28.  Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

Sobre o tema, confira-se o escólio de Paulo Rangel:

Não podemos confundir a liberdade de agir que tem o Ministério Público, em verificar a existência do fato – infração e seus demais elementos autorizadores da propositura da ação –, com a obrigação de promover ação de qualquer maneira. Não. Dever de agir, desde que presentes os requisitos que viabilizam o curso do processo. Assim, pode e deve o Ministério Público deixar de promover a ação desde que o fato apurado no inquérito seja atípico, ou, embora típico, não haja a justa causa (cf. item 4.9.4 infra), ou ainda, em nosso entender, nos seguintes casos: a) quando o fato for insignificante para o direito penal diante de uma criminalidade cada vez mais avançada, tornando desnecessária uma atuação estatal naquele caso concreto (princípio da bagatela: furto de alicate de unha, de xampu em um supermercado; peculato de uma caneta da repartição pública etc.); […] (Rangel, 2018).

De todo modo, a questão ainda ‘engatinha’ fora das discussões acadêmicas, havendo, como antes colacionado, inegável precedente do STJ em sentido diverso ao exposto pelos aludidos autores.

Do que se viu até aqui:

  • o Judiciário pode reconhecer a insignificância, mesmo em fase de inquérito (trancamento);
  • o STJ tem precedente que não admite reconhecimento de insignificância pelo delegado;
  • parte da doutrina admite o reconhecimento da insignificância pela autoridade policial.

[1] JUNIOR, Salah H. Khaled; ROSA, Alexandre Morais da. “Delegados relevantes e lesões insignificantes: a legitimidade do reconhecimento da falta de tipicidade material pela autoridade policial”. Disponível em: http://www.justificando.com/2014/11/25/delegados-relevantes-e-lesoes-insignificantes-legitimidade-reconhecimento-da-falta-de-tipicidade-material-pela-autoridade-policial/.

[2] Pela sua redação original, que ainda está em vigência, uma vez que se encontra suspensa a alteração promovida pela Lei 13.964/2019 em virtude de cautelar concedida na ADI 6.305.

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Veja os comentários
  • Muito bom, e o STF ainda não tem posicionamento sobre isso, correto? E na prova, o que marcamos? kkk PC-PR previu expressamente esse debate no edital...
    Felipe em 26/09/20 às 23:39
  • Sem dúvida, o melhor professor das carreiras jurídicas. Aulas com conteúdos completos, linguagem clara e segura, simples, objetivo, eficiente e sem estrelismo. Parabéns pelo seu profissionalismo e inegável vasto conhecimento jurídico.
    Ramon em 25/05/20 às 19:27
    • Muito Obrigado!!!
      Leonardo Ribas Tavares em 28/06/20 às 17:35
  • Parabéns e agradecido pelo esclarecimento sobre o tema tão atual.
    Prof. Carlos Eduardo em 11/05/20 às 21:44
  • Professor, Partindo do pressupostos de ser possível a aplicação da insignificância pelo delegado de polícia(exclusão do crime por ausência de tipicidade material); seria possível também a aplicação de uma excludente de ilicitude(legítima defesa, por exemplo) e consequentemente não lavrar o APFD ? Sendo certo que ambas são hipóteses que excluem a existência do crime
    Felipe Meireles em 10/05/20 às 15:44
    • Olá! Partindo desse pressuposto um campo vasto se abre, inclusive esses que vc indica. Daí uma das razões de a jurisprudência ser reticente e não acolher o pressuposto erigido.
      Leonardo Ribas Tavares em 28/06/20 às 17:34
  • Melhor, impossível.
    Patricia em 06/05/20 às 20:18
  • Excelente!!! Muito esclarecedor e cirúrgico. Parabéns, professor!!!
    Joyce em 27/04/20 às 15:26
  • Excelente!!!
    Wellington em 24/04/20 às 13:05
  • Ótimo, muito obrigado professor.
    Leônidas em 14/04/20 às 00:00
  • Muito bom! Parabéns!
    BRUNO em 13/04/20 às 22:00
  • Sem comentários, quando comecei a ler já pensei: Esse é diferenciado,escreve muito bem. Quando fui ver o currículo vi que atualmente é Juiz de direito e ex- Advogado da União. Espero que ele escreva mais aqui no estratégia. Parabéns.
    Elivan Coutinho em 13/04/20 às 18:59