Amor e aprovação
Uma doença não diagnosticada na infância provocou a surdez unilateral da minha esposa. A perda auditiva em um dos ouvidos ultrapassa os 80%. Ela, extremamente disciplinada, se dedicava aos concursos há algum tempo e ainda não tinha obtido um único resultado que fosse compatível com seu esforço. A desproporção entre a dedicação aos estudos e o desempenho nas provas a conduziu a um quadro de desânimo e frustração quase irreversível. Quase.
A fim de resolver a questão anímica, certo dia sugeri que estudássemos juntos. Ao ler o caderno de anotações que ela fazia das aulas percebi os efeitos deletérios da surdez parcial: ela ouvia errado, anotava errado e, logicamente, marcava errado na prova.
Como quem não queria transferir a responsabilidade, ela se negava a admitir que a disacusia unilateral a atrapalhava. Mas a ciência é implacável : “[a] audição é a principal fonte para aquisição de habilidades de linguagem e fala em indivíduos normais” e “em comparação com crianças com audição normal, aquelas com deficiência auditiva experimentam mais dificuldades na escola e têm um risco 10 vezes maior de fracasso escolar”.
Era preciso convencê-la que havia uma dificuldade extra. A presenteei com um gravador portátil. Ela ia à aula, fazia as anotações e depois ouvia a gravação. O primeiro cotejo entre o registro feito no momento da aula e o do áudio gravado foi suficiente para persuadi-la.
As suas anotações passaram a simpatizar com os pedidos do examinador e o desempenho, paulatinamente, foi melhorando.
No final do ano de 2010 foi publicado edital para provimento de cargos do Superior Tribunal Militar, com prova marcada para janeiro de 2011.
Eu já era servidor do TJDFT e a aplicação da prova era logo após o recesso judiciário. Optei por não viajar com a família para ficar com ela, mas não podia dizer que essa decisão era uma faculdade. Não queria pressioná-la… Inventei que havia sido escalado para trabalhar no plantão do tribunal e, portanto, não poderia viajar.
Passamos o final do ano em Brasília – quem conhece a cidade sabe o quão vazia ela fica nesse período – ideal para quem quer estudar. Sem muita habilidade, fiz uma ceia de natal com bastante uva passas para ela e nenhuma para mim. Demos risada do nosso “amigo oculto” de duas pessoas. A queima de fogos do réveillon daquele ano ela assistiu da mesa de estudos enquanto eu cochilava.
Na segunda quinzena de janeiro ela fez a prova, foi aprovada e hoje é servidora do Poder Judiciário da União. Superou uma significativa deficiência auditiva, concorreu às vagas destinadas para a ampla concorrência e venceu! (O Decreto n. 3.298/1999 considera apenas a surdez bilateral como necessidade especial, nos termos do artigo 4º, II ).
A aprovação, embora o mérito seja do aprovado, não é – muitas vezes – exclusivo dele. A família e as pessoas que mantêm convivência mais próxima assumem papel decisivo nesse processo, de modo que é preciso tê-los como aliados durante a trajetória.
“Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá em grupo”. (Provérbio Africano)
O desempenho do concursando, muitas vezes, é a tradução de esforço coletivo – dele próprio e de quem o cerca (família e amigos). Por isso, julgo extremamente importante convencer os familiares desse esforço coletivo, além de ter no círculo de convivência mais próximo pessoas que dividem o mesmo objetivo.
Ao escrever sobre o tema minha ideia inicial era citar o quanto fui ajudado. Desisti. Não caberia em poucas linhas todo o suporte que me deram durante a minha caminhada. Mencionei o auxílio que dei à minha esposa, mas que fique claro: fui e sou muito mais ajudado por ela que ela por mim.
Nenhum artigo é aqui publicado, por exemplo, sem que passe pelo seu crivo rigoroso. A crítica que ela faz, com alguma frequência, é ácida. Mas o amor suporta. O amor aprova.
Abraços! Bons estudos!