O Abandono de Cargo e Abandono de Posto
Introdução
O objetivo deste artigo é explicar o conceito do abandono de posto e abandono de função e as a visão da jurisprudência sobre estes delitos da administração pública.
Um dos princípios mais importantes da administração pública é o da continuidade dos serviços públicos. Esse princípio é importante porque determina que, a despeito de eventuais contratempos e dificuldades, o serviço público deve continuar, pois o serviço público visa à coletividade geral, sempre com a finalidade do bem comum.
A atividade da administração pública é ininterrupta, não se admitindo a paralisação dos serviços públicos. De outra forma, os serviços públicos não podem sofrer solução de continuidade. Uma extensão desse princípio faz parte inclusive do Código do Consumidor que determina que os serviços essenciais devem ser contínuos.
Outro princípio do direito civil é o da responsabilidade civil, que, de acordo com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), impõe que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão por danos causados pelos seus agentes.
A responsabilidade civil do Estado aplica-se a qualquer das funções públicas, não se limitando somente aos danos provenientes dos atos administrativos, independentemente da existência de dolo ou culpa do agente público causador do dano.
A combinação destes princípios da administração pública já previstos na CF/88 traz uma abordagem quanto ao papel dos agentes públicos: a responsabilidade por não deixar os serviços públicos paralisarem, sendo responsáveis por ressarcir as pessoas pelos danos decorrentes das ações do Estado.
Com isso, as leis trouxeram previsões sobre situações em que o agente público abandona seus afazeres, deixando a coletividade ou a sociedade à sua própria sorte. Estas situações são duas: o abandono de função pública, aplicável aos servidores públicos civis e o abandono de posto, aplicável aos servidores militares. Esses dois tipos de abandono trazem repercussões diretas para a sociedade, exigindo soluções apropriadas.
O abandono de função pública
O Decreto-Lei n° 2848/1940, o Código Penal (CP), tipifica os crimes no direito penal do Brasil. Tipifica porque especifica, determina, estabelece. O direito penal prevê uma determinada ação ou omissão que, ao ser praticada, configura um crime.
Neste caso descrito, o abandono de função pública está no Código Penal, no Título XI – Dos Crimes Contra a Administração Pública, no Capítulo I – Dos Crimes Praticados por Funcionário Público Contra a Administração em Geral. O art. 323 prevê: “Abandonar cargo público, fora dos casos permitidos em lei:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
§ 1º – Se do fato resulta prejuízo público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 2º – Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de fronteira:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.”
Desta maneira, o bem jurídico tutelado é o regular desenvolvimento das atividades da administração pública. O sujeito ativo, ou seja, quem pratica o crime só pode ser o ocupante de cargo público. É possível que haja um participante do crime que não seja funcionário público, em uma situação caracterizada como concurso de pessoas (quando duas ou mais pessoas praticam os atos do crime em si), desde que o particular tenha conhecimento da condição de funcionário público do agente.
A conduta descrita é abandonar o cargo. A definição do que seria o abandono (por quanto tempo, em quais situações) deve ser analisada com base no estatuto ao qual o servidor esteja vinculado. Entretanto, a doutrina majoritária entende que o exercício do direito de greve não pode se aplicar a este crime. Uma parte da doutrina defende que o crime pode ocorrer se o servidor, ainda que compareça, se recuse a trabalhar.
Neste crime existem qualificadoras – circunstâncias que tornam o crime mais danoso, como a ocorrência de prejuízo público, que aumenta a pena de 15 dias para um mês de detenção, ou se o abandono ocorre em lugar compreendido como faixa de fronteira – a extensão de 150 km de largura ao longo das fronteiras terrestres, que eleva a pena inicial para três anos.
O abandono de posto
O Decreto-Lei n° 1.001/1969, o Código Militar (CM), estipula os delitos cometidos por militares. As forças armadas são organizações de Estado onde imperam a hierarquia e disciplina, logo precisam de estatutos mais rígidos para tratar de infrações de militares.
No Título III – Dos Crimes Contra o Serviço Militar e o Dever Militar, existem quatro tipos de crimes: a insubmissão (art. 183), a deserção (art. 187), o abandono de posto (art. 195) e o exercício de comércio por oficial (art. 204).
O crime de abandono de posto é descrito no art. 195: “Abandonar, sem ordem superior, o posto ou lugar de serviço que lhe tenha sido designado, ou o serviço que lhe cumpria, antes de terminá-lo:
Pena – detenção, de três meses a um ano.”
O abandono de posto é um crime mais específico, visto que somente se aplica ao militar, diferentemente do abandono de função pública, a participação de um civil neste crime configura conduta atípica – não importando que o particular saiba da condição de militar do agente. Portanto, este crime não comporta coautoria. É um crime de mera conduta, ou seja, independe do resultado, sendo também um crime de perigo, pois sua prática implica em deixar pessoas ou locais sem a devida vigilância.
No caso do abandono de posto, existe uma conduta assemelhada, que é o afastamento de posto – não é crime, mas, sim, transgressão disciplinar. No caso da Polícia Militar de São Paulo, em seu regulamento são atos que se caracterizam por “abandonar serviço para o qual tenha sido designado ou recusar-se a executá-lo na forma determinada” e “afastar-se, quando em atividade policial-militar com veículo automotor, aeronave, embarcação ou a pé, da área em que deveria permanecer ou não cumprir roteiro de patrulhamento predeterminado”. Ambas as transgressões neste diploma legal são consideradas graves, puníveis com demissão e expulsão da corporação.
As forças armadas (exército, marinha e aeronáutica) também possuem a figura do afastamento de posto, que, em geral, se caracteriza pela figura da ausência, em seus códigos específicos.
A linha que diferencia as duas transgressões é tênue, sendo que a doutrina costuma apontar o seguinte critério para diferenciar uma conduta da outra: se o militar abandona o posto, mas permanece por perto, mantendo de alguma forma vigilância inequívoca sobre o posto sob sua responsabilidade, podendo prontamente intervir se preciso for, esta conduta é atípica penalmente, sendo caracterizada como afastamento e não abandono.
Abandono de função, abandono de posto e jurisprudência
Apesar da especificidade de ambos os delitos, existem alguns casos na jurisprudência dos tribunais superiores. No Supremo Tribunal Federal (STF) houve um julgado sobre abandono de posto e deserção. A situação envolvia um crime de abandono de posto seguido de deserção, em que se discutiu a possibilidade de acumulação das punições, que o Supremo entendeu equivocada.
A visão do tribunal constitucional foi que o fato do abandono e a deserção, dentro de um mesmo contexto fático, não implica duas ações autônomas, incidindo, nesta hipótese, o fenômeno de absorção de um crime por outro, visto que o abandono se configurou em meio necessário para se atingir a deserção.
Nesse caso, a jurisprudência do STF parece trazer razoabilidade, no sentido de não punir duplamente o agente militar, pois, o abandono, neste caso, fez parte da intenção maior, a deserção, por isto o fenômeno da absorção.
Existe também a situação da linha tênue afastamento/abandono, em que os tribunais superiores entendem de forma similar à doutrina majoritária: se o militar exerce, de alguma forma, a vigilância inequívoca, podendo intervir a qualquer momento, o caso a ser discutido é, então, afastamento, não abandono.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ) já foi verificada em jurisprudência da corte que a figura do abandono de cargo, punível com demissão, demanda que se investigue a intenção deliberada do servidor de abandonar o cargo.
O STJ provavelmente entende isso necessário por conta de não somente atender à lei, evidentemente, mas também assegurar que o servidor não seja objeto de perseguições por parte de superiores ou outros agentes que possam influenciar no suposto caso de abandono. É preciso apurar a intenção do servidor de abandonar a função pública.
Em todos os casos apresentados fica evidente que os tribunais superiores, no sentido de aplicar a justiça adequadamente, buscam verificar as intenções dos agentes, na determinação dos crimes.
Conclusões
Este texto procurou mostrar e explicar dois tipos de abandono de agentes públicos que geram danos para a coletividade: o abandono de função pública e o abandono de posto.
O abandono de função pública é um delito tipicamente civil, mas nem por isso deixa de ser menos lesivo, especialmente nas situações em que o abandono pode implicar em interrupção de um serviço essencial, como os serviços públicos de saúde, ou serviços educacionais, ou mesmo prestações de serviços públicos, nas quais, da mesma forma, a população fica sem alternativas de ver suas necessidades serem atendidas, ainda que momentaneamente.
Como o serviço público visa atender à coletividade, os danos decorrentes de uma interrupção do serviço pelo abandono de função podem ser a execução de um serviço para uma quantidade pequena de pessoas, ou uma cidade, um estado, ou mesmo o país inteiro.
O abandono de posto é um crime militar, cujas repercussões em geral são mais marcantes, visto que pode significar a perda de segurança, ou de resposta ao combate imediato de crimes em execução ou que potencialmente possam acontecer. No caso do abandono de posto, a hipótese apresenta-se mais grave do que um abandono de função.
Também por ser um crime típico de agente militares, é previsto em código específico, com punições mais rígidas que as punições dos civis. Entretanto, talvez justamente por isso, os códigos militares têm uma segunda tipificação, de maneira menos gravosa: o afastamento de posto, em que ocorre a desídia, mas de uma forma que não impede uma forma de vigilância e potencial intervenção. Foi desta forma que o código militar encontrou uma forma menos grave do que o abandono de posto.
É interessante também observar que os tribunais superiores, atendendo às especificidades dos dois tipos criminais, entendem que é essencial identificar o animus abandonandi – nesses casos, a intenção do agente de abandonar o serviço ou posto.
Ricardo Pereira de Oliveira
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