Artigo

A Imunidade Tributária Recíproca e a Jurisprudência

Conceitos Iniciais

Este artigo se destina a expor como uma das imunidades mais básicas foi estabelecida no ordenamento jurídico nacional, e como a jurisprudência brasileira foi acrescentando e redefinindo os contornos da imunidade recíproca.

Como já exposto anteriormente, a imunidade é definida, pela maioria dos autores em direito tributário, como uma não incidência constitucionalmente qualificada. Há autores que a definem como uma delimitação negativa da competência tributária – e todas essas ideias transmitem a concepção de limitação ao poder de tributar do Estado. Entre as imunidades tributárias a impostos, existe uma que também é considerada ontológica, por ser a materialização da proteção ao pacto federativo. Esta é a imunidade recíproca, assim demonstrada na redação original da lei n.o 5.173/66, o Código Tributário Nacional (CTN), no artigo 9.o, inciso IV, alínea “a”, cuja redação foi transcrita também na Constituição Federal de 1988 (CF/88): “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)

VI – instituir impostos sobre:        

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

b) templos de qualquer culto;

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;”

Antes de mais nada, cumpre esclarecer que esta imunidade refere-se tão somente a impostos, não abrangendo taxas, contribuições de melhoria, contribuições sociais ou mesmo contribuições de intervenção no domínio econômico. Uma segunda ressalva é a de que neste texto está sendo tratada a imunidade recíproca (a que está contida na alínea “a” – as outras foram mencionadas apenas para expor as diferenças entre elas, mais adiante).

A taxa refere-se a uma contraprestação ou ao exercício do poder de polícia estatal, ou ao um serviço público, específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição; a contribuição de melhoria é o valor pago que em virtude de uma valorização imobiliária decorrente da realização de uma obra pública. Dessa forma, nota-se que nas duas espécies tributárias que ambas são relativas a algo que o Estado realiza, ou seja, é um fato do Estado. Os impostos, por sua vez, são tributos cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte, constituindo, assim, um fato do contribuinte.

Evidentemente, a imunidade recíproca foi idealizada visando proteger o pacto federativo, não permitindo submeter qualquer dos entes federativos à expressão mais forte do poder de tributar de outro ente. A espécie escolhida foi o imposto, pois dos tributos originalmente estabelecidos no CTN – a taxa, a contribuição de melhoria e os impostos –, estes últimos possuem uma característica diferente dos anteriores, pois não envolvem uma prestação do poder público.

Cumpre recordar que, no que se refere às imunidades tributárias descritas no artigo 150, VI, da CF/88, estão incluídas também as religiosas, as das entidades beneficentes de assistência social, as dos partidos políticos, das suas fundações, e dos sindicatos dos trabalhadores (alíneas “b” e “c”). Este trecho da CF/88 é importante porque comporta duas considerações: a primeira é de se trata, neste trecho específico, de imunidades subjetivas, imunidades essas atribuídas a identidade dessas entidades, a quem elas de fato são. A segunda consideração é mais complexa.

Em que pese serem imunidades subjetivas, quase todas são condicionadas, ou seja, dependem de uma análise: a de que a renda, patrimônio ou serviços sejam aplicados em suas finalidades essenciais, pois o objetivo constitucional foi justamente esse, o de proteger estas instituições no exercício destas atividades. A imunidade recíproca possui outro escopo, de duplo alcance; ela, em primeiro lugar, é ontológica (ontologia é a ciência do estudo do ser). Para simplificar, um exemplo: uma família patriarcal possui seus elementos característicos, dentre eles o pai. O pai é um elemento ontológico da família patriarcal, pois ele, por ser o que é, dá a definição a este tipo de família. Não há família patriarcal sem a figura do pai, não é mesmo? Em segundo lugar, a imunidade recíproca possui este nome pois na federação, estes entes reconhecem-se como iguais, concretizando o corolário da isonomia.

Existe um entendimento amplamente desposado pela doutrina majoritária e pelos tribunais superiores, notadamente o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que a imunidade recíproca é uma das imunidades teleologicamente justificadas, por prestigiar valores constitucionalmente consagrados, tratando-se de ideias-forças ou postulados essenciais ao regime democrático, que asseguram o adequado funcionamento de um sistema – representando, assim, cláusulas pétreas. Isso significa que qualquer reforma constitucional que vise diminuir, atenuar, ou mesmo retirar estas imunidades não pode executar tais atos nesta constituição. Para que algo desta magnitude possa ser feito, outra constituição deverá ser promulgada. Ao contrário, qualquer reforma no sentido de ampliar o alcance desta imunidade pode ser realizada ainda nesta constituição.

A natureza desta distinção é clara: enquanto as imunidades recíprocas foram idealizadas como uma forma de proteção dos mesmos entre si, e, desta forma, não haveria a necessidade de verificar se a renda, patrimônio ou serviços estariam sendo aplicados em suas atividades essenciais; por outro lado, as outras entidades deveriam observar este preceito, como ocorre com os templos de qualquer culto, e também com as entidades beneficentes de assistência social.

A imunidade recíproca não foi estabelecida para contemplar esta análise, mas mesmo essa ideia vem sofrendo mudanças, à medida que ações judiciais questionam o alcance destas imunidades.

A Imunidade Recíproca e a Jurisprudência

Existem algumas decisões da jurisprudência sobre o alcance da imunidade recíproca, já havendo inclusive a Súmula STF 583 – Promitente comprador de imóvel residencial transcrito em nome de autarquia é contribuinte do imposto predial territorial urbano.” Obviamente, quando uma entidade não imune compra um imóvel de ente imune, como se trata de imunidade subjetiva e ontológica, a imunidade é perdida.

Em um dos casos judiciais mais antigos, o egrégio tribunal decidiu que a imunidade recíproca, conforme o texto constitucional, refere-se somente aos impostos, não alcançando as taxas. Dentro deste mesmo postulado, também foi decidido pelo STF que a imunidade recíproca não pode ser invocada na hipótese de contribuições previdenciárias.

Alguns questionamentos têm sido feitos a respeito da incidência de impostos, como um município que questionou a incidência de ICMS sobre sua conta de energia elétrica. Tal questionamento foi refutado pelo Supremo, com base da tese da diferenciação entre o contribuinte de direito e contribuinte de fato. O contribuinte de fato é quem, por vezes, arca com o ônus de pagar o tributo, não necessariamente o real contribuinte na relação jurídico-tributária. O contribuinte de direito é quem realmente está nesta relação, mas às vezes não arca com o ônus de pagar este mesmo tributo. Neste caso, o município entrou questionando a incidência do ICMS sobre sua conta de energia – mas foi contestado pelo STF, no sentido em que o contribuinte de direito nesta relação não é o município, mas a companhia de energia elétrica. O município está nesta relação como contribuinte de fato: ele paga efetivamente o tributo (incluído na conta de energia). Desta feita, a jurisprudência não acatou a aplicação da imunidade recíproca. Portanto, o município não é considerado imune.

Outra ação, contestando a incidência do Imposto de Importação (II) sobre importações realizadas por outro município, teve o reconhecimento que caberia a imunidade recíproca, já que, nesta situação, o município seria o referido contribuinte de direito.

A imunidade recíproca foi originalmente estipulada apenas para os entes federativos (administração direta), autarquias e fundações públicas. Mas o Supremo vem estendendo o alcance desta imunidade para as empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviço público como atividade obrigatória e exclusiva de estado. Existem decisões neste sentido em favor da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), Companhia de Águas e Esgoto de Rondônia (CAERD), Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), e Casa da Moeda do Brasil (CMB).

A Infraero, empresa pública que atende a infra-estrutura dos aeroportos brasileiros, teve sua imunidade recíproca reconhecida.
A Infraero, empresa pública que atende a infraestrutura dos aeroportos brasileiros, teve sua imunidade recíproca reconhecida.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) possui decisões do STF, estendendo a imunidade recíproca a IPTU incidente sobre imóveis, tanto os de sua propriedade como os por ela utilizados. Da mesma forma, não incide o IPVA sobre os veículos de sua propriedade. De acordo com o mesmo raciocínio, não incide ICMS sobre o transporte de bens e mercadorias realizado por ela em suas entregas.

Curioso apontar que, mesmo sob a composição de capital híbrido de uma sociedade de economia mista (capital público, juntamente com capital privado), o reconhecimento é estendido para a entidade como um todo. O que o excelso tribunal analisa é se há a prestação de serviços públicos, ou não.

Os Correios possuem várias decisões na jurisprudência reconhecendo imunidade tributária.
Os Correios possuem várias decisões na jurisprudência reconhecendo imunidade tributária.

Uma situação que acaba por corroborar esta tese é a recusa pelo egrégio tribunal em estender a imunidade recíproca à Petrobrás. Confrontado com a circunstância da atividade exercida em exclusividade pela União (monopólio do refino do petróleo), o STF entendeu que esta circunstância é irrelevante para a definição da aplicabilidade da imunidade tributária – em uma decisão que definiu ser tributável uma propriedade utilizada pela empresa para a instalação e operação de transporte de seus produtos. O Supremo entendeu que a atividade exercida pela empresa se dá em caráter privado, visando a obtenção de lucro, e, portanto, dissociada do interesse público primário – ao contrário do que se observaria em uma prestação de serviços públicos. Desta forma, a empresa possui capacidade contributiva, e a tributação via impostos não representa risco ao pacto federativo. Em outra ocasião, a Petrobrás arrendou um terreno da União, e sob o mesmo pressuposto, foi denegada o reconhecimento da imunidade recíproca.

Em decisão relativamente recente, o egrégio tribunal estendeu a imunidade recíproca à Caixa de Assistência dos Advogados da OAB, sob a argumentação de que a Caixa de Assistência presta serviços delegados, possui caráter jurídico de ente público e não explora atividade econômica com intuito lucrativo. Portanto a jurisprudência aplicou o entendimento que essa entidade goza de imunidade recíproca.

A Caixa de Assistência dos Advogados da OAB, em virtude dos serviços prestados, foi reconhecida como entidade imune.
A Caixa de Assistência dos Advogados da OAB, em virtude dos serviços prestados, foi reconhecida como entidade imune.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) também teve o reconhecimento de imunidade pelo Supremo, pois não se verifica a configuração de atividade própria das empresas privadas. A eventual exploração de unidade agroindustrial, desapropriada, em área de conflito social, está no âmbito de sua destinação social em setor relevante para a vida nacional.

Em que pese o reconhecimento de imunidade recíproca estendido à Infraero, houve o caso de um contrato de concessão de um terreno no Rio de Janeiro para uma concessionária de veículos, em que se utilizava o argumento da imunidade recíproca. O tribunal guardião constitucional entendeu que, da mesma forma que no caso da Petrobrás demonstrado, a jurisprudência não deve reconhecer a imunidade recíproca, pois não há que se falar em imunidade, quando a atividade é exercida com evidente intuito lucrativo. Então, neste caso específico, deve incidir o IPTU sobre o imóvel em contrato de concessão.

Por último, um caso foi apresentado ao STF sobre bens e direitos que integram o patrimônio do fundo vinculado ao Programa de Arrendamento Residencial (PAR), criado pela lei n. 10.188/2001. Como se trata de um fundo de recursos públicos composto por participação da União e da Caixa Econômica Federal (CEF), a jurisprudência estendeu a ele a imunidade recíproca. Entretanto, para a CEF, isto se dá limitativamente, com relação à sua participação no fundo, e enquanto administradora deste fundo. A CEF, em si, é sociedade de economia mista explora atividade econômica em sentido estrito, e, nessa qualidade, ela não é imune.

*Em tempo: em jurisprudência recente, no Informativo STF 985, o Supremo analisou questão relativa a contrato de alienação fiduciária de veículo, em que pessoa jurídica de direito público figurava como devedora. No julgado, o STF reiterou que não incide o IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores) sobre o veículo adquirido, mediante alienação fiduciária, por pessoa jurídica de direito público.

Imunidade Recíproca: Conclusões

Conforme exposto neste texto, buscou-se demonstrar o que norteou a imunidade recíproca, uma vez que esta é uma das bases que mantêm o equilíbrio em um sistema federativo, alcançando inclusive a isonomia entre os mesmos entes. Com a crescente sofisticação do sistema federativo, cada um dos entes pode descentralizar sua respectiva administração pública, disciplinando formatos distintos com outras pessoas jurídicas de direito público e privado exercendo as mais variadas atividades.

E estes formatos podem implicar uma miríade de atividades, que podem adentrar outros limites e áreas do direito constitucional, como por exemplo, as normas do direito econômico, expostas nos artigos 170 a 181 da CF/88. Uma dessas regras diz respeito ao caráter subsidiário da atuação estatal, sendo permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional, ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. Outro preceito é o de que empresas públicas e sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado. Cada uma das regras relacionadas visa assegurar a livre concorrência, princípio basilar da ordem econômica brasileira.

Por todo esse contexto, é possível notar que a abrangência de uma análise sobre um pleito de uma possível imunidade recíproca deve observar se a atividade é de fato um serviço público ou não, se é prestada em caráter exclusivo, visando atender a uma falha de mercado (na eventualidade de não haver empresas que exerçam a atividade), bem como o impacto econômico da extensão desta imunidade a outras entidades que não haviam sido mencionadas no texto constitucional. Ou seja, devem ser sopesados vários aspectos, em conjunto, para uma melhor compreensão de cada caso em discussão.

Ricardo Pereira de Oliveira

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