Neste texto será demonstrada a correlação entre a imunidade tributária dos livros e a jurisprudência. Mas, antes de mais nada, uma das definições mais imprescindíveis no direito tributário é discernir os conceitos de não incidência, isenção e imunidade. Embora estes três conceitos impliquem um “não pagar impostos” – estes conceitos guardam diferenças entre si.
Delimitando cada um dos conceitos, a não incidência é o mais simples deles. Na não incidência, o legislador poderia colocar aquela situação como uma das que o tributo iria incidir, mas escolhe não chegar até ali. A lei não chega até aquele ponto. A isenção trata de uma liberalidade do legislador: ele concede um favor, para que o tributo não chegue naquela situação ou contribuinte. Até este ponto, não incidência e isenção podem ser revertidos – basta que o legislador mude de ideia.
A imunidade é o mais elaborado destes conceitos. Ela trata de uma situação descrita na constituição, que impede que o legislador exerça o seu poder. São situações nas quais o constituinte originário (ou o derivado) estabelece uma espécie de proteção, detendo o poder de tributar sobre a situação determinada, visando resguardar certos valores que se convencionou serem mais importantes que o direito tributário, em questão.
Existem alguns tipos de imunidades: gerais ou específicas, ontológicas ou políticas, subjetivas ou objetivas, condicionadas e incondicionadas. O objetivo deste texto é demonstrar elementos da imunidade cultural dos livros. Esta imunidade dos livros faz parte do gênero cultural, que originalmente continha somente os livros, no advento da Constituição Federal de 1988 (CF/88), mas que depois de emenda constitucional passou a abrigar outra espécie, a de produções audiovisuais. Entretanto, neste texto, o objeto da discussão é mostrar como a imunidade dos livros foi sendo definida pela constituição e pela jurisprudência.
A imunidade dos livros foi estabelecida na CF/88, com o objetivo de não onerar os livros, jornais, periódicos e o papel destinado à impressão destes bens com impostos. De acordo com Aliomar Baleeiro, importante tributarista brasileiro, “a Constituição almeja duplo objetivo ao estatuir essa imunidade: amparar e estimular a cultura e disseminação de informação e conhecimento, através de livros, jornais e periódicos, bem como garantir a liberdade de manifestação do pensamento, expressão, e o direito de crítica. Porque o imposto, nestas situações, pode servir como meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade da manifestação do pensamento, a crítica dos governos e homens públicos, enfim, de direitos que não são apenas individuais, mas indispensáveis à pureza do regime democrático.”
Em um país que possuía, ao longo do século XX, índices de analfabetismo bastante altos, produto de uma história particularmente inóspita com relação à educação, a ideia parece ter sido a de incentivar a cultura, através do barateamento destes produtos, e ao mesmo tempo diminuir o poder impositivo do Estado. Desta forma, é possível inferir que uma das consequências atingidas foi a de atribuir a ela um caráter de utilidade social.
Para que se tenha uma maior noção do que representa esta imunidade, faz-se necessário mencionar os veículos diferentes os quais esta imunidade abrange: livros, jornais, revistas, listas telefônicas, álbuns de figurinhas, fascículos, apostilas e todos estes itens em forma digital. Trata-se de uma imunidade de cunho objetivo, na qual estes bens, ou mesmo o papel impresso com esta finalidade está abrangido.
A jurisprudência tem guiado as discussões sobre a imunidade dos livros e imprensa no que se refere às situações que não se apresentam completamente conforme as previsões originais na CF/88. Um fato importante a ser esclarecido neste ponto é que o direito, através de suas postulações, seja por intermédio da constituição, seja por meio da lei em sentido estrito, não se antecipa às necessidades da sociedade, mas as segue, em uma velocidade muito menor. Ou seja: os fenômenos ocorrem no mundo dos fatos, de forma que o direito busca regê-las a posteriori.
Desta forma, quando as situações acontecem, as leis devem acompanhá-las, mas há situações em que o processo legiferante depende de discussões que irão originar leis, em um período de tempo difícil de estimar, enquanto os casos concretos continuam acontecendo. Ou pode ocorrer o seguinte: nem mesmo as leis aprovadas são suficientes para dirimir as controvérsias, restando, no sistema judiciário brasileiro, a apreciação judicial. E, nesse diapasão, a corte constitucional (STF) possui papel fundamental em verificar a abrangência das imunidades em discussão.
No caso desta imunidade cultural, algumas discussões importantes foram estimuladas, ao longo dos últimos anos, gerando alguns postulados que formaram a jurisprudência sobre a imunidade dos livros e imprensa.
Na jurisprudência, o livro físico já foi reconhecido como o objeto em si na qual a imunidade incide, bem como os jornais, revistas e periódicos. A partir deste ponto, começaram os questionamentos. As apostilas, fascículos, listas telefônicas, álbuns de figurinhas, revistas em quadrinhos, revistas eróticas, seriam abrangidas por essa imunidade?
Dentro dos julgamentos realizados pelo STF, sim. Outro ponto fundamental que deve ser compreendido nesta discussão é que a imunidade deve ser entendida de forma ampla e finalística – em contraponto ao conceito de isenção, por exemplo, que deve ser entendido literalmente, de forma estrita, conforme já previsto na Lei n.o 5.172/1966, o Código Tributário Nacional (CTN). A imunidade deve ser sempre cotejada conforme os objetivos do constituinte originário ou derivado, não se limitando ao texto constitucional de forma literal.
Desta forma, as apostilas e fascículos devem ser entendidos como novos formatos e veículos de instrução, análogos aos livros, de forma a transmitir informação para a formação do conhecimento. Da mesma maneira, as listas telefônicas também desempenham papel correlato aos jornais e revistas, disseminando informações de benefício público – ainda que contenham propagandas, e exposições diferenciadas de seus assinantes, de forma paga, pelos mesmos.
No que se refere às revistas, periódicos, quadrinhos, álbuns de figurinhas e revistas eróticas, os mesmos conceitos se aplicam. À primeira vista, parece se tratar neste ponto de veículos de menor valor cultural, até mesmo que propaga valores ofensivos aos valores morais e familiares. Entretanto, o STF analisou essa discussão sob o espectro finalístico, concluindo que, ao estabelecer esta imunidade, o legislador buscou dar uma efetiva liberdade da expressão de opiniões – não estabelecendo uma gradação de valores sobre obras culturais – assim, não cabendo ao intérprete (o juiz) estipular uma escala de valor cultural entre esses produtos.
E quanto ao papel e outros componentes utilizados? Qual o alcance da imunidade dos livros? Nas discussões proferidas no STF até os dias atuais, tem se buscado sopesar a finalidade contra o uso indiscriminado de tal imunidade. No que se refere ao papel, não importa o tipo ou qualidade dele: se é utilizado na impressão destes produtos, ele permanece imune. Da mesma forma, filmes e papéis fotográficos utilizados com esta finalidade também se beneficiam do beneplácito da imunidade.
Todavia, há determinados limites para o gozo desta imunidade. As chapas de impressão e o maquinário utilizado na impressão de livros não são considerados insumos assimiláveis ao papel, de forma que não possuem as condições de se beneficiar da imunidade. Ressalva feita aqui à questão da imunidade da tinta especializada na impressão de jornais, que não possui julgado definitivo – tendo sido já definida em julgados como imune, e também definida como não imune.
Há ainda outros aspectos que foram objeto da análise da extensão de imunidade, como os serviços de composição gráfica, muitas vezes necessários à diagramação de jornais e revistas, que são considerados mera prestação de serviços meio, e também não podem se beneficiar da imunidade. Além disso, serviços de distribuição de livros, jornais e periódicos não estão abrangidos pela imunidade – voltando a reforçar que a imunidade é objetiva, limitada ao objeto (livro) em questão.
Algumas últimas discussões trazidas sobre a imunidade dos livros: os encartes jornalísticos são imunes? Sim, desde que impressos no mesmo papel do jornal, como parte dele. Encartes impressos em papel diferente são peças de natureza propagandística de índole eminentemente comercial, e assim, não estão abrangidas pela imunidade.
Outro ponto recente foi o advento de cursos em fascículos que contenham peças de conjuntos para montagem. A imunidade chegaria ao ponto de abranger até mesmo as peças? Conforme o egrégio tribunal, sim, pois neste caso o curso busca melhorar a experiência do aluno mesclando o conteúdo teórico com a atividade lúdica de aplicar o aprendizado em atividades práticas – como é o caso dos fascículos de cursos de computação com montagem de computadores, que foi o caso apresentado no tribunal.
Por último, a mais recente discussão sobre a imunidade dos livros foi o advento do livro eletrônico. Com os avanços da tecnologia, está cada vez mais portátil e virtual o conceito de livros e assemelhados, que podem ser lidos no computador, em dispositivos portáteis como tablets e até mesmo celulares. E então? Seria razoável estender a imunidade aos novos livros em formato digital? E qual seria o limite disso, considerando que há vários dispositivos capazes de permitir a leitura virtual?
Novamente, o STF discutiu o tema. Em repercussão geral, ficou entendido que o conceito de livro é, sim, amplo, não se limitando ao livro físico, mas chegando aos livros virtuais, inclusive abrangendo os suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo. A explicação para os suportes mencionados refere-se aos exclusivamente produzidos com esta finalidade, que não apresentam outra utilização além da de possibilitar a leitura de livros. Um exemplo do que seria um dispositivo do tipo Kindle, que possui somente a finalidade de leitura de livros digitais.
Desta maneira, limita-se a abrangência da imunidade, não incluindo dispositivos que tenham mais de uma finalidade, como telefones celulares tipo smartphones, computadores, laptops e tablets.
*Em tempo: no Informativo STF 974, foi publicada a Súmula Vinculante STF 57: “A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias.”
As discussões no âmbito da jurisprudência, principalmente em um tema como imunidade da imprensa e dos livros, são muito importantes para entender o alcance de normas legais, bem como, ao longo do tempo, como questões com o nível de importância da imunidade podem afetar vários setores da economia de um país.
Como a sociedade muda constantemente e continuamente, sempre haverá dúvidas ou situações novas que demandarão uma resposta seja dos legisladores, seja dos juízes, pois nosso sistema jurídico exige a prestação jurisdicional, ainda que não existam leis sobre a questão. Isso mostra quanta responsabilidade recai sobre esta prestação jurisdicional, uma vez que uma decisão pode afetar um país inteiro.
Interessante também analisar outro aspecto. Embora o STF tenha estabelecido que a imunidade tenha de ser analisada sob o espectro finalístico, e não apenas literalmente, como as isenções, isso não pode e nem deve ser feito de forma absoluta – pois mesmo o aspecto finalístico possui limites. A ideia transmitida nesta concepção é de que a análise não pode ser simplista, mas sistemática, de forma a melhor atender aos pressupostos constitucionais e aos propósitos originais consagrados pelos constituintes originários.
Ricardo Pereira de Oliveira
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