Privatização das estatais: o que acontece com os servidores?
Como se dará a transição do regime de pessoal das empresas públicas com a privatização promovida pelo Presidente eleito
Em decorrência da sinalização dada pelo Presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, de uma profunda mudança nos rumos da economia do país, há um pari passu a ser seguido na concretização dessa intenção: redução da participação do Estado na economia e do déficit fiscal combinados com a abertura econômica gradual.
Com essa disposição, interessante destacar a situação do regime de pessoal ao se conceber a privatizações de empresas públicas. Dúvidas pairam no ar. Nesse artigo, faremos uma breve análise sobre as eventuais tratativas para o deslinde dessa demanda a qual inevitavelmente estará na pauta. Ao final, também deixaremos o link para nossa aula em vídeo sobre o tema.
Da situação atual dos empregos públicos
A essa altura, depois de tomada ciência de que os fundos de pensão foram esvaziados, enquanto pensavam o seu oposto, uma vez que permaneciam em suas atividades, de sol a sol, os empregados da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), aqueles que prestaram concurso para ingresso na carreira, por exemplo, devem se perguntar de que forma será mais uma vez mudada em tão breve interregno a sua vida.
É sabido que os empregados públicos são agentes os quais mantêm relação funcional com o Estado em regime contratual trabalhista (celetista), regido pela Consolidação das Leis do Trabalho/CLT. Como ocupantes de empregos públicos, encontram-se sujeitos, predominantemente, a regime jurídico de direito privado, todavia, submetem-se a algumas normas constitucionais aplicáveis à Administração Pública em geral, como os requisitos para investidura e acumulação de cargos, por exemplo.
Certo é que apesar de as empresas estatais se submeterem ao mesmo regime das sociedades privadas quanto ao aspecto trabalhista, conforme o art. 173, § 1º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil, há também previsão de uma série de diferenciações a esse regime, como por exemplo, (a) a necessidade de realização de concurso público para a contratação desses empregados (art. 37, II); (b) a vedação da acumulação de cargos, empregos ou funções públicas (art. 37, XVII; e (c) a submissão ao teto remuneratório constitucional (art. 37, XI), aplicável, este último, somente às empresas estatais dependentes.
Em se considerando o fato de as empresas estatais integrarem a esfera estatal da economia, determinadas imposições a essas estatais são inatas devido à origem pública de recursos. Pelo dito, há de haver um parâmetro para disposição do salário de seus dirigentes, não podendo tais cifras exorbitarem o valor de mercado, por exemplo. Se são imposições constitucionais, tanto o ramo do direito privado ou público será atingido pela Espada de Dâmocles.
Com a promulgação da CRFB, muito se debateu quanto à aplicabilidade da exigência constitucional do concurso público (art. 37, II) às empresas estatais. Como a jurisprudência tardou em consolidar o tema, muitas empresas estatais continuaram a promover contratações sem o prévio concurso público, como anteriormente a essa nova Carta.
O posicionamento atual do STF, embasado no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 21322 – DF, afirmativo dessa obrigatoriedade, só veio a ser fixado em 1992. Esse MS versava sobre a contratação de empregados pela Infraero sem a prévia realização de concurso público. Segundo o voto do relator, o Ministro Paulo Brossard, o art. 37, II, não faz diferenciação entre funcionários públicos e empregados públicos, sendo, portanto, obrigatório o concurso público também para a contratação desses últimos pelas entidades da Administração Indireta. Com isso quis dizer que ‘se a Constituição na exigência de concurso público para provimento de cargos e empregos públicos não fez qualquer restrição às entidades da administração pública indireta, é de se concluir que a exigência se aplica a toda empresa estatal, seja ela prestadora de serviço público, seja ela prestadora de atividade econômica de natureza privada’.
Atualmente, uma das discussões que subsiste é se é possível a uma estatal contratar sem concurso público para posições profissionais relevantes pessoal muito requisitado pelo mercado e que, nesse caso, não se submeteria a concurso público pelo estágio e renome conhecidos em seu setor de origem.
Para Paulo Ricardo Schier, “a Constituição parece reconhecer: (a) que a exigência de concurso público não é absoluta; (b) que existem situações em que a necessidade de se proteger outros bens, princípios ou interesses constitucionais podem justificar o afastamento desta exigência; (c) que o acesso aos cargos, empregos e funções públicas não são superiores, em dadas condições, à necessidade de satisfação do interesse público, a outros direitos fundamentais ou à segurança e confiança em alguns campos de relação política”.1
Por isso, “não é sem razão que autorizada doutrina tem admitido o afastamento da contratação mediante concurso público a partir de exceções que não aquelas expressamente definidas no texto constitucional, cogitando que a entidade possa motivadamente prescindir da realização de concurso público nas condições em que a sua realização obstaria alguma necessidade de imediata admissão de pessoal ou quando se trate de contratar profissionais de maior qualificação, que não teriam interesse em se submeter a prestá-lo, por serem absorvidos avidamente pelo mercado”.2-3
Outra exceção à regra da obrigatoriedade do concurso público ocorre no caso da incorporação de empresas privadas por empresas estatais, tendo em vista a incidência das regras de sucessão trabalhista previstas na CLT.
Ao tratar desse tema Caio Tácito ensina que o que há é a ‘continuidade, o aproveitamento de um contrato de trabalho anterior à aquisição promovendo mera sub-rogação subjetiva no campo do empregador. Nessa hipótese de incorporação de empresas inexiste admissão de pessoal. Há aproveitamento do componente humano que segue o destino da incorporação material da empresa, que é, por definição, um complexo de material e trabalho.’ 4-5
Da situação atual para uma situação futura dos empregados públicos
Dadas as considerações, o que poderá ocorrer, contrario sensu, é o olhar direcionado para o caminho inverso ao relatado: empresas estatais sendo incorporadas por empresas privadas.
Se de forma indubitável não se lhes aplicava a estabilidade dos servidores públicos, muitos menos agora isso seria cabível.
Mutatis mutandis, com a possibilidade de afastamento da Súmula 372, do TST, em que se garantia a incorporação da gratificação de função recebida, qualquer que tenha sido o tempo de exercício da função ou motivo de destituição, com a reforma trabalhista isso não mais subsistiu. Nesse quadro de mudança à vista, isso não se reverteria nesse momento. Permanecendo tal entendimento ainda mais.
Outro ponto diz respeito à obrigatoriedade da motivação da dispensa de empregados. Esses, no regime atual, podem ser dispensados livremente, mas a empresa deverá justificar por que está dispensando e os seus critérios de escolha. Com isso não se visa diretamente proteger os empregados, mas evitar arbítrios por parte de uma entidade que, mesmo sendo de direito privado, também integra a Administração Pública, o que poderia não mais perdurar vislumbrando um quadro próximo de reestruturação como se é planejado, na medida do noticiado.
Assim, se com relação a empresas estatais competitivas esses critérios devem ser ainda mais flexíveis, como isso se dará quando a incorporação da empresa estatal pela empresa privada efetivamente ocorrer, uma vez que as necessidades e os critérios também devem ser objetivamente expostos no atual momento, ressalvadas, por óbvio, as revelações as quais podem prejudicar a atuação concorrencial da empresa.
Quadro de transição
Tecidas todas essas considerações, impossível imaginar a ausência da atuação do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União – CGU, com fundamento em sua competência para promover a supervisão das entidades da Administração Indireta nesse ato de transição, de modo a fiscalizar a demissão de empregados de empresas estatais, caso isso venha a ocorrer, com o vínculo empregatício com uma pessoa (a estatal) sendo extinto por ato de outra pessoa (a empresa privada).
Esse encargo deve, ainda, recair sobre a Administração Pública de um modo geral. Nesse ínterim, há que se preservar o que legalmente beneficia esse futuro empregado, não mais no exercício de uma função pública.
Nesse sentido, e por fim, há de se trazer a peito a exigência de que a materialização do ato administrativo deve revestir-se da forma legal, sendo que a revogação ou a modificação do ato administrativo deve ser concretizada pela mesma forma do ato originário, segundo o princípio do “paralelismo das formas”.
Por esse princípio, a lógica coerente há de ser adotada tanto para a elaboração de um ato quanto para a exclusão desse mesmo ato. A demissão, como ato jurídico que o é, só se modifica mediante o emprego de formas idênticas àquelas adotadas para elaborá-lo, ou seja, a contratação desse mesmo empregado público. E isso há de ser preservado nessa troca de comando.
Notas
1 Constitucionalização e 20 Anos da Constituição: reflexões sobre a exigência de concurso público (isonomia, eficiência e segurança jurídica). In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P. 823.
2 IBIDEM, P. 833.
3 No mesmo sentido, podemos citar FERREIRA, Sergio Andrea. Empresa estatal – Funções de Confiança – Constituição Federal, art. 37, n. 11 Revista de Direito Administrativo, n. 227, jan-mar. 2002.
4 TÁCITO, Caio. Sociedade de Economia Mista. Incorporação de outra empresa. Temas de Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. 2.º v., p. 1158.
5 A justiça do Trabalho já reconheceu expressamente que a sucessão trabalhista não viola a regra do art. 37, II, da Constituição Federal: “é parte legítima a R. CORSAN, empregadora do A. para responder à demanda, condição que se verifica in status assertionis, a ela apenas pertinentes os pedidos de decretação da ineficácia da despedida, com reintegração no emprego e consequente pagamento de salários e vantagens do período do afastamento, e, sucessivamente, de diferenças do acréscimo legal de 40% do FGTS. Exclusão da lide da CORLAC que se endossa, a teor da Lei Estadual 10.000/93, por ter sido, o trabalhador, reaproveitado nos quadros da CORSAN, por força da extinção da sociedade de economia mista com a qual mantinha contrato de trabalho, sem solução de continuidade, em espécie de sucessão trabalhista sui generis, a afastar como óbice a norma do artigo 37, II, da Constituição Federal”. TRT4, RO 01152.003/95-0, j. 27.10.1999, 1.ª T