O Informativo de nº 642 do STJ, de 15/3/2019, trouxe à baila uma curiosa situação envolvendo a coexistência de coisas julgadas distintas no processo penal: um mesmo fato criminoso (estupro de vulnerável) foi julgado ‘definitivamente’, duas vezes, por juízos diferentes. Não bastasse isso, a primeira sentença condenou o acusado; a segunda, absolveu-o.
Pergunta-se, então, qual sentença deverá prevalecer?
No início de 2018, o STJ se deparou com semelhante situação (nesse outro caso, duas sentenças condenatórias foram proferidas e transitaram em julgado). Na oportunidade, entendeu-se que deveria prevalecer o decisum mais favorável ao acusado, independentemente da ordem cronológica. Esse entendimento acabou por constar do Informativo 616 (do STJ), de 17/01/2018, cujo destaque era: Diante do trânsito em julgado de duas sentenças condenatórias por fatos idênticos, deve prevalecer a condenação mais favorável ao réu.
Contudo, o entendimento foi alterado pelo Tribunal, como se percebe do mais recente Informativo. Agora, entendeu o STJ que deveria prevalecer a primeira sentença transitada em julgado, mesmo que mais gravosa ao acusado, porquanto (dentre outros argumentos) o segundo processo sequer poderia ter tramitado e a sentença nele proferida seria insubsistente (visão já adotada pelo STF); além de que a segunda coisa julgada não desfrutaria da respectiva proteção constitucional, já que formada em violação à própria Carta Magna. Ademais, essa conclusão foi reforçada pela quebra do dever de lealdade processual pela defesa, por não ter mencionado, no segundo processo, a existência de prévio pronunciamento definitivo do Poder Judiciário sobre o mesmo caso.
Confira o destaque do Informativo e o respectivo julgado:
Diante do duplo julgamento do mesmo fato, deve prevalecer a sentença que transitou em julgado em primeiro lugar (Informativo 642-STJ, de 15/03/2019).
RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DUPLICIDADE DE AÇÕES PENAIS PELO MESMO FATO. PROLAÇÃO DE SENTENÇA. TRÂNSITO EM JULGADO. PREVALÊNCIA DO PRIMEIRO DECISUM IMUTÁVEL. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. No caso, foram distribuídas duas ações penais contra os recorrentes, ambas na Comarca de Santarém – PA, para a apuração dos mesmos fatos – prática de conjunção carnal com a vítima, menor de 14 anos à época dos fatos.
2. A primeira ação penal foi distribuída ao Juízo da Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e a sentença foi proferida em 21/11/2013 para condenar os réus como incursos no art. 217-A do Código Penal. A condenação transitou em julgado em 18/12/2014.
3. A segunda persecução criminal foi distribuída ao Juízo da 2ª Vara Criminal. Em 22/5/2015, foi proferida sentença absolutória, que transitou em julgado em 29/10/2015.
4. No que atine ao conflito de coisas julgadas, a Terceira Seção desta Corte Superior afirmou que “a primeira decisão é a que deve preponderar” (AgRg nos EmbExeMS n. 3.901/DF, Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 21/11/2018). Ainda que a análise haja sido realizada no âmbito do processo civil, os apontamentos feitos podem ser aplicados, também, ao processo penal.
5. A solução é consentânea com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, afirmada em mais de uma oportunidade. Nesse sentido: HC n. 101.131/DF (Rel. Ministro Luiz Fux, Rel. p/ acórdão Ministro Marco Aurélio, 1ª T., DJe 10/2/2012); HC n. 77.909/DF (Rel. Ministro Moreira Alves, 1ª T., DJ 12/3/1999); HC n. 69.615/SP (Rel. Ministro Carlos Velloso, 2ª T., DJ 19/2/1993).
6. A prevalência da primeira decisão imutável é reforçada pela quebra do dever de lealdade processual por parte da defesa. A leitura da segunda sentença – proferida após o trânsito em julgado da condenação – permite concluir que a duplicidade não foi mencionada sequer nas alegações finais.
7. Ainda, a hipótese em exame guarda outra peculiaridade, a justificar a manutenção do primeiro decisum proferido: a absolvição dos réus, na segunda sentença, contraria jurisprudência – consolidada à época – do Superior Tribunal de Justiça.
8. Ainda que o julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.480.881/PI pela Terceira Seção do STJ seja posterior à prolação da sentença mencionada (26/8/2015), o entendimento já estava uniformizado na jurisprudência e, em abril de 2014, a matéria foi pacificada por força do julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.152.864/SC (Rel. Ministra Laurita Vaz, 3ª S., DJe 1/4/2014).
9. Recurso não provido.
(RHC 69.586/PA, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 04/02/2019).
O tema é delicado, mas vamos um pouco mais longe…
Como se nota dos itens 2 e 3 da ementa transcrita acima e do relatório processual, todos os atos mais significativos do primeiro processo (oferecimento e recebimento de denúncia, prolação de sentença e trânsito em julgado) aconteceram anteriormente aos do segundo (aquele que absolveu). Como acabou por não constar da ementa, registre-se que, em relação à primeira ação, a denúncia foi oferecida em 14/10/2011 e recebida em 21/10/2011; quanto à segunda, a peça acusatória foi oferecida em 03/11/2011 e recebida em 21/11/2011. Em outras palavras: o processo que condenou o réu se iniciou antes.
Nem sempre isso ocorre. É bem possível, por exemplo, que um ‘segundo’ processo (que se inicia depois) tenha uma decisão proferida e transitada em julgado antes. Basta que tramite mais rápido.
E se isso ocorrer, qual sentença deve prevalecer?
A questão ganha ainda mais relevo quando se observa os argumentos lançados no voto vencedor do supracitado julgado. Dentre outros, são citados dois precedentes do STF que, embora partam de premissas diferentes (e incompatíveis), acabam por chegar à mesma conclusão; mas isso só porque o caso retratado no Informativo seguiu a lógica temporal mencionada há pouco (processo que começou antes, terminou antes).
Confira cada um dos julgados citados, com algumas observações:
“Habeas corpus”. […] Finalmente – e este é o caso sob exame -, quando só se verifica a existência de duas ações penais relativas ao mesmo réu e pelo mesmo fato a ele imputado depois de que, em ambas suas decisões já transitaram em julgado, essa questão não mais se resolve pela prevenção que é o critério para a solução da litispendência, que, com o trânsito em julgado da decisão proferida numa delas, já deixou de existir, mas, sim, pelo critério da precedência da decisão transitada em julgado, porquanto, se houvesse sido conhecida essa decisão enquanto a outra ação penal estava em curso, esta ação teria sido definitivamente paralizada [sic], como se salientou acima. Ora, no caso, como a própria impetração noticia, o processo 3.044/94 do Tribunal do Júri de Taguatinga (DF) teve a sentença condenatória transitada em julgado em 20.03.98, ao passo que o processo 10.946/93 da 1ª Vara Criminal de Taguatinga (DF) teve a decisão, que declarou extinta a punibilidade por prescrição da pretensão punitiva, com trânsito em julgado em 30.04.98, razão por que esta é nula em face da coisa julgada ocorrida naquela. “Habeas corpus” indeferido. (HC 77909, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 20/10/1998, DJ 12-03-1999 PP-00004 EMENT VOL-01942-02 PP-00257).
Perceba que, aqui, a sentença que primeiro transitou em julgado dizia respeito, na verdade, ao ‘segundo’ processo (autos nº 3.044/94); a sentença da primeira ação (autos nº 10.946/93) se tornou definitiva mais de um mês depois.
Basicamente, o entendimento do STF foi no sentido de que, com o advento da coisa julgada, seja qual for a ordem cronológica do processo de que decorra (independentemente, portanto, de qual se iniciou antes), torna-se nula posterior decisão sobre a mesma matéria. Por esse precedente, então, importa a formação da coisa julgada (a data do trânsito em julgado); prevalecerá aquela que vier antes.
Agora vejamos o segundo precedente citado:
PROCESSO – DUPLICIDADE – SENTENÇAS CONDENATÓRIAS. Os institutos da litispendência e da coisa julgada direcionam à insubsistência do segundo processo e da segunda sentença proferida, sendo imprópria a prevalência do que seja mais favorável ao acusado. (HC n. 101.131/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Rel. p/ acórdão Ministro Marco Aurélio, 1ª T., DJe 10/2/2012, grifei).
Ainda, como argumento, é citado trecho do voto do Min. Marco Aurélio de Mello, proferido neste julgado, que dispõe:
“Já, então, existiria, quanto ao segundo processo, o óbice ao pressuposto do desenvolvimento válido, a ação ajuizada anteriormente. Mas ambos os processos foram julgados. As duas decisões transitaram em julgado, mostraram-se preclusas. Indago: é possível, ante o sistema processual, dar prevalência à segunda decisão, ou seja, a que teria transgredido o princípio da coisa julgada relativa ao primeiro processo? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa. Não posso potencializar a circunstância de que, no segundo processo, se haver chegado a uma pena menor, porque se poderia ter chegado, também, a uma maior.
Aqui, não se trata de escolher a decisão que seja mais favorável ao réu. Trata-se de perceber que esse segundo processo não poderia ter tramitado e que, tendo sido prolatada sentença e tendo sido esta coberta pela preclusão maior, é insubsistente porque o processo anterior – quanto à data do ajuizamento da ação, pouco importando a data do trânsito em julgado – já obstaculizava esse segundo crivo do Judiciário”.
Repare que, aqui, o argumento é de que o segundo processo simplesmente não seria válido, de modo que a decisão nele proferida seria insubsistente pela anterioridade do “ajuizamento” da primeira ação penal, “pouco importando a data do trânsito em julgado”. Portanto, tudo que decorresse do segundo processo instaurado seria insubsistente, pois já havia óbice, ab initio, ao segundo crivo do Judiciário.
Num precedente o STF entendeu prevalecer a formação da coisa julgada; noutro compreendeu mais importante verificar qual ação penal iniciou antes.
Disso se conclui que os tribunais superiores ainda revelam inconsistências quanto aos argumentos jurídicos para escolha de qual decisão deve prevalecer. É certo que não importa o conteúdo da decisão (se é mais favorável ou não ao réu); mas não é assente se deve preponderar a decisão da primeira ação (só por ela ter começado antes), ou se deve preponderar a decisão que transitar em julgado antes (mesmo que ela tenha começado depois).
Insisto: no caso concreto do Informativo mais recente do STJ os Ministros não se depararam com essa contingência – que pode ocorrer.
De todo modo, respondendo à segunda indagação, pelas expressões que acabaram por ser empregadas no destaque do Informativo 642 (Diante do duplo julgamento do mesmo fato, deve prevalecer a sentença que transitou em julgado em primeiro lugar) e na ementa do respectivo julgado, ao que tudo indica, pela visão do STJ, deverá prevalecer a primeira decisão que formar a coisa julgada (que primeiro transitar em julgado) -, ainda que decorrente de processo iniciado posteriormente.
Perceba que se tratam de situações extraordinárias. É importante, no ensejo, relembrar que o CPP contempla mecanismos processuais para controle e prevenção de situações dessa natureza, como as exceções de litispendência (evitando o trâmite simultâneo de mais de uma ação penal a respeito do mesmo fato) e de coisa julgada (evitando o desenvolvimento de novo processo sobre matéria que já fora decidida definitivamente). Inclusive, entende-se que essas matérias podem ser alegadas pelas partes a qualquer momento, desde que anteriormente à sentença, não estando sujeitas à preclusão prévia. Além disso, também podem ser reconhecidas ex officio pelo magistrado.
É dizer: se uma ação penal sobre determinado fato está tramitando em juízo, outra ação penal idêntica que porventura seja instaurada deverá ser extinta por litispendência. Se a primeira já foi julgada definitivamente, a nova ação penal sobre o mesmo fato deverá ser extinta pela existência de coisa julgada.
Casos como os retratados nos julgados supra apenas ocorrem quando os sujeitos processuais, por um ou outro motivo, acabam não atentando à presença dessas importantes circunstâncias que podem fulminar antecipadamente uma ação penal.
De qualquer forma, ao final dessa análise, sinteticamente pode-se concluir que, mais recentemente, para o STJ:
i) o conteúdo da decisão não é relevante para saber qual decisão prepondera;
ii) importa verificar a formação da coisa julgada, ou seja, qual decisão transitou em julgado antes.
Lembre-se que temos precedente do STF que fez prevalecer a data do “ajuizamento” da ação.
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