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POLÍCIA JUDICIÁRIA E POLÍCIA INVESTIGATIVA – HÁ DIFERENÇA?

A resposta a essa primeira indagação tem relevância prática. Faço uma segunda pergunta para demonstrar isso: poderia a Polícia Militar cumprir ordem de busca e apreensão de um juiz federal ou de um juiz de direito? Ou não poderia e necessariamente essa ordem deveria ser cumprida pela Polícia Federal ou pela Polícia Civil?

Vamos lá, do começo.

No âmbito do processo penal, as funções de polícia costumam ser tratadas em duas espécies: polícia administrativa e polícia judiciária.

Em relação à polícia administrativa não há maiores discussões; trata-se do policiamento ostensivo e preventivo, relacionado à própria noção de segurança pública de uma localidade. É desempenhado pela Polícia Militar, como evidencia o art. 144, § 5º da Constituição Federal:

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

Por outro lado, o termo polícia judiciária (função exercida pela Polícia Civil e Polícia Federal) é objeto de dissenso na doutrina e na jurisprudência, mormente em relação ao seu alcance e à necessidade, ou não, de que seja diferenciado da chamada polícia investigativa.

As questões que se colocam são basicamente as seguintes: a polícia judiciária engloba a polícia investigativa? Ou não, são polícias distintas, com atribuições que não se confundem?

Neste ponto, percebem-se duas visões sobre o tema:

A Primeira visão:

A polícia judiciária engloba tanto a função de apuração da materialidade e autoria de crimes quanto a função de auxílio ao Poder Judiciário no cumprimento de diligências relacionadas à atividade jurisdicional criminal, como os mandados de prisão e de busca e apreensão, conduções coercitivas etc.

Para essa visão, portanto, não haveria se falar em uma função de polícia investigativa alheia à de polícia judiciária; a segunda englobaria todas as atribuições posteriores à prática do crime, inclusive a investigação. Esse entendimento tem como base o art. 4º do CPP, que estabelece:

Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Adepto desse entendimento (como sói acontecer com a doutrina mais ortodoxa), Helio Tornaghi já afirmava que “a principal atribuição da polícia judiciária é a de proceder a inquérito para apuração dos fatos criminosos e sua autoria. Além disso, o atual Código de Processo Penal, no art. 13, continua dando à polícia judiciária atribuições de auxiliar à justiça […]” (Tornaghi, 1977).

Pode-se, inclusive, depreender essa aglutinação das funções da Súmula Vinculante 14, que relaciona o ato de investigação ao órgão dotado de ‘competência’[1] de polícia judiciária:

Súmula vinculante nº 14. É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

A Segunda visão:

Polícia investigativa e polícia judiciária não se confundem. Caberia à primeira a colheita de elementos de informação a respeito de materialidade ou autoria de crimes (apuração); caberia à segunda o auxílio ao Poder Judiciário no cumprimento de ordens e diligências.

Essa visão tem como fundamento originário a separação entre as funções de investigação e de polícia judiciária da Polícia Federal que se verifica nos incisos I e IV do art. 144, § 1º da Constituição Federal:

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

A mesma ideia é percebida no § 4º do mesmo artigo, desta vez em relação à Polícia Civil:

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Ainda, nota-se a separação das funções no art. 2º da Lei 12.850/2013 – Lei de Organização Criminosa que dispõe também sobre investigação criminal:

Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

Portanto, segundo esse entendimento, as disposições constitucionais (de 1988) demonstrariam não ter a Carta Magna recepcionado a ideia de aglutinação das funções contida no art. 4º do CPP (de 1941), o que ainda teria sido reforçado por recente lei federal (de 2013).

Embora adepto da necessária separação entre polícia judiciária e investigativa, Renato Brasileiro de Lima reconhece prevalecer a primeira visão apresentada:

Apesar de acreditarmos que a Constituição Federal estabelece uma distinção entre polícia judiciária e polícia investigativa, somos obrigados a admitir que prevalece na doutrina e jurisprudência a utilização da expressão polícia judiciária para se referir ao exercício de atividades relacionadas à apuração da infração penal (Lima, 2017).

Todavia, nota-se, nos dois últimos anos, uma forte guinada do Superior Tribunal de Justiça em direção à segunda visão. Vem entendendo a Corte Superior que se deve evitar uma interpretação restritiva do art. 144 da Constituição Federal, sob pena de se inviabilizar a persecução penal, assentando-se para tanto, basicamente, três ideias:

  • a diferenciação das funções de polícia investigativa e judiciária, ao argumento de que o art. 144 da Constituição Federal, em seus parágrafos, separa as funções de ‘elucidação de crimes’ das funções de ‘polícia judiciária’, o que demonstraria não ter a Lei Maior recepcionado o art. 4º do Código de Processo Penal;
  • a consideração das funções de polícia judiciária como exclusivas das Polícias Civil e Federal, mas não as de polícia investigativa;
  • o reconhecimento, por consequência, da possibilidade de realização de “atribuições investigatórias” por outras autoridades administrativas (como a Polícia Militar, as CPIs, o MP).

Contudo, nota-se uma inconsistência nos recentes julgados do STJ sobre o assunto. Ao mesmo tempo em que reconhece a exclusividade do desempenho das funções de polícia judiciária à Polícia Civil e Polícia Federal, também afirma que não só a Polícia Militar pode investigar (polícia investigativa) como também pode cumprir mandado de busca e apreensão (que é justamente uma função da polícia judiciária):

[…] 1. A Constituição da República diferencia as funções de polícia judiciária e de polícia investigativa, sendo que apenas a primeira foi conferida com exclusividade à polícia federal e à polícia civil, evidenciando a legalidade de investigações realizadas pela polícia militar e da busca e apreensão por aquela corporação realizada, mediante ordem judicial. (RHC 97.886/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/08/2018).

Ora, não se olvida que a Polícia Militar pode desempenhar ambas as funções no âmbito dos crimes militares (investigação em inquérito policial militar e cumprimento, como Polícia Militar Judiciária, de decisões da Justiça Militar), nos termos do Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar. Ocorre que, em alguns julgados do STJ, não são esses os casos; em verdade, afirma-se ‘genericamente’ que a Polícia Militar pode investigar e cumprir decisões (notadamente de busca e apreensão) e que tais diligências são válidas. Aparentemente, o STJ inclui o cumprimento de busca e apreensão como diligências ‘de investigação’, as quais, por sua vez, estão incluídas na função de polícia investigativa, que se estende à Polícia Militar.

Confiram-se alguns trechos de julgados nesse sentido:

[…] II – A polícia militar pode empreender atos investigatórios, inclusive cumprimento de mandado de busca e apreensão, não havendo que se falar em nulidade ou ilicitude das provas obtidas mediante observância do ordenamento jurídico, não sendo possível dar interpretação restritiva ao art. 144 da CF, sob pena de inviabilizar em muitos casos a persecução penal. Precedentes. […] (AgRg no REsp 1672330/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 19/06/2018).

[…] Na hipótese dos autos, a realização de busca e apreensão na residência do paciente, conquanto sem autorização judicial, foi precedida não só de denúncias anônimas sobre o tráfico realizado no local, mas também de ronda policial na localidade, momento em que o paciente, ao avistar a guarnição da Polícia Militar, empreendeu fuga e buscou se refugiar dentro de sua casa. 5. “A tese de usurpação da competência da Polícia Civil pela Polícia Militar, no caso, não encontra respaldo jurídico, pois, diversamente das funções de polícia judiciária – exclusivas das polícias federal e civil -, as funções de polícia investigativa podem ser realizadas pela Polícia Militar “(HC 476.482/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Sexta Turma, julgado em 21/2/2019) […]. (AgRg no RHC 109.770/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 14/05/2019).

[…] 1. A Constituição da República diferencia as funções de polícia judiciária e de polícia investigativa, sendo que apenas a primeira foi conferida com exclusividade à polícia federal e à polícia civil, evidenciando a legalidade de investigações realizadas pela polícia militar e da busca e apreensão por aquela corporação realizada, mediante ordem judicial. 2. Em se tratando de crime de tráfico de drogas, considerado de natureza permanente, sequer seria obrigatório o mandado de busca e apreensão para operar-se o flagrante. […] (RHC 97.886/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/08/2018). [destaques inexistentes]

Em relação ao Supremo Tribunal Federal, não se tem notícia de eventual adesão a essa nova orientação que vem sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça. Contudo, em breve artigo publicado em seu site, Norberto Avena chega a afirmar que a diferenciação entre polícia investigativa e judiciária restaria ‘pacificada’ em ambos os tribunais:

STF e STJ pacificaram o entendimento de que a Constituição Federal de 1988 e a Lei 12.830/2013 (que dispõe sobre a investigação criminal conduzida por delegado de polícia) diferenciaram as funções de Polícia Judiciária e de Polícia Investigativa, inserindo, na primeira, as atividades de auxílio ao Poder Judiciário no cumprimento de suas ordens (execução de mandados de busca, cumprimento de mandados de prisão, condução de testemunhas etc.) e, na segunda, a atribuição relacionada à colheita de provas da autoria e materialidade criminosa.[2]

Ocorre que não é essa a ideia que se colhe do já citado enunciado sumular vinculante 14 (do STF, naturalmente), que, grosso modo, relaciona ambas as funções na mesma polícia judiciária.

No contexto atual, parece mais prudente registrar que a visão majoritária (pela aglutinação das funções investigativas à polícia judiciária) vem perdendo força com o crescente entendimento separativo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Sem embargo das inconsistências antes anotadas alusivas às minúcias dessa orientação, fato é que a tendência atual (observada a compreensão do STJ) é pela preponderância das disposições do art. 144 da Constituição Federal, com as seguintes balizas:

  • A polícia judiciária e polícia investigativa não se confundem, nos termos das disposições constitucionais;
  • A polícia judiciária é função ‘exclusiva’ das Polícias Civil e Federal, mas não a função de polícia investigativa;
  • o cumprimento de mandado de busca e apreensão representa situação excepcional, e, embora teórica e tecnicamente constitua função de polícia judiciária (auxílio ao Poder Judiciário), pode ser realizada pela Polícia Militar, não havendo se falar em nulidade da diligência.

Com relação à última baliza, difícil é compreender como o cumprimento de uma ordem de busca e apreensão judicial constitua uma função de polícia investigativa; penso (assim como Norberto Avena) que seria de polícia judiciária, de acordo com as diretrizes não exaustivas fixadas no art. 13 do CPP. Em sendo de polícia judiciária, no âmbito da União, seria atribuição ‘exclusiva’ (art. 144, § 1º, IV) da Polícia Federal. Então, exemplificando e respondendo às indagações iniciais, a Polícia Militar não poderia realizar uma busca e apreensão determinada por um juiz federal. A ordem deveria necessariamente ser cumprida pela Polícia Federal.

No âmbito estadual, salvo engano, não existe nenhuma norma (seja constitucional ou legal) que atribua, expressamente, a função de polícia judiciária, ‘com exclusividade’, à Polícia Civil (assim como acontece com a polícia investigativa) – embora o STJ diga que o seja. Em sendo a minha premissa verdadeira, a Polícia Militar poderia sim cumprir uma ordem de busca e apreensão de um juiz estadual. Não haveria nenhuma ilegalidade ou inconstitucionalidade nesse caso.

Há se reconhecer que a polícia judiciária é uma função ‘típica’ tanto da Polícia Federal quanto da Polícia Civil; todavia, dizer que é típica não significa estabelecer exclusividade. Essa ‘exclusividade’ (de polícia judiciária da União) só é estabelecida para a Polícia Federal, nos termos do inc. IV do § 1º do art. 144 da Constituição Federal – não para a Polícia Civil.

Tudo isso analisando as situações em termos de legalidade e/ou constitucionalidade, sem ingressar no ‘terreno’ das nulidades, onde as questões ganhariam novos contornos.[3]


[1] Termo empregado no enunciado, mas que se refere, em verdade, a uma ‘atribuição’.

[2] AVENA, Norberto. Polícia judiciária e polícia investigativa: distinção. Disponível em: https://www.norbertoavena.com.br/blog/interna/policia-judiciaria-e-policia-investigativa-distincao. Acesso em 05/05/2020.

[3] Lembrando que os tribunais superiores são uníssonos em aplicar o princípio do prejuízo inclusive para as nulidades ditas absolutas. Ou seja: não existe imediatidade na invalidação de atos ilegais ou viciados.

Leonardo Ribas Tavares

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