Diante das inovações operadas pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), focalizando o objeto de nossa análise, as questões que se colocam são as seguintes: o juiz pode decretar prisão preventiva de ofício? Em caso negativo, temos exceções no CPP?
A constatação histórica é a seguinte: ao longo dos últimos anos, o legislador, cada vez mais, tem restringido as possibilidades de o juiz agir de ofício, inclusive (mas não só) no que se refere à prisão cautelar. Grosso modo, os motivos dessas restrições estão voltados à preservação da imparcialidade do juiz e à consolidação do sistema acusatório. O legislador parte da premissa[1] de que caso o juiz tome a iniciativa para decretar a prisão, estaria, inarredavelmente, fugindo do âmbito de suas atribuições (violação ao sistema acusatório), violando a inércia e ingressando numa predisposição condenatória (desrespeito à imparcialidade).
Quando da edição, em 1941, o CPP permitia a preventiva de ofício (basta ver a redação originária do art. 311 do CPP). Entretanto, pelos motivos antes declinados, isso começou a mudar em 2011, com a Lei 12.403, e chegou a um último estágio em 2019, com a Lei 13.964. A primeira Lei proibiu o juiz de decretar preventiva de ofício em fase de investigação; a segunda, estendeu a proibição também para a fase de processo. Eis o atual e vigente dispositivo de lei:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
A interpretação é a seguinte: na medida em que o art. 311 do CPP agora não tem a locução “de ofício” (na redação antiga existente) e como refere expressamente “a requerimento” ou “por representação”, significa que o magistrado, para determinar prisão preventiva, depende dessas ‘provocações’ dos legitimados.
O raciocínio (da proibição de agir de ofício) é basicamente o mesmo em relação a medidas cautelares diversas da prisão, nos termos do § 2º do art. 282 do CPP.
Até aqui, então, consolidamos uma primeira resposta para as indagações iniciais e uma regra geral, qual seja: o juiz não pode decretar prisão preventiva (ou qualquer outra medida cautelar pessoal) de ofício. Alguns podem até não concordar com a política de persecução penal que se implementa nos últimos anos no Brasil[2], mas não há dúvida de que essa foi a opção do legislador, tomada democraticamente, que merece respeito e observância.
Até aqui nada de controverso. O entendimento da doutrina e da jurisprudência caminha ‘de mãos dadas’ sustentando essa proibição. O problema ou o debate jurídico ocorre quando vamos analisar se existe ou não ‘exceção’ a essa regra geral.
Alguns, como Aury Lopes Jr., vão sustentar que “está vedada a prisão decretada de ofício pelo juiz” e que necessariamente ele deve decidir “a partir do requerimento da parte acusadora ou, na investigação preliminar, mediante representação da autoridade policial ou pedido do MP. Jamais de ofício” (Lopes Jr., Aury. Direito Processo Penal – 17ª Edição 2020. Editora Saraiva).
No mesmo sentido sustenta Renato Brasileiro de Lima, para quem, “a qualquer momento da persecução penal, a decretação das medidas cautelares pelo juiz só poderá ocorrer mediante provocação” dos legitimados. “Desde que o magistrado seja provocado, é possível a decretação de qualquer medida cautelar, haja vista a fungibilidade que vigora em relação a elas” (Lima, Renato Brasileiro. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19, 2020. JusPodivm).
Nada diferente do que pensa Rogério Sanches Cunha:
Se ao juiz é dado o poder de julgar e se, para tanto, deve manter uma posição de equidistância e imparcialidade, seria mais adequado que se deixasse às partes a possibilidade de requerer a prisão preventiva (inclusive durante o curso do processo), evitando-se, com isso, qualquer ação do juiz “sponte própria”. A Lei 13.964/19 (art. 3º-A CPP) prestigiando o sistema acusatório, acabou por acolher os ensinamentos acima, alterando novamente o art. 311 do CPP, agora proibindo o juiz agir de ofício em qualquer das fases da persecução. A decretação da prisão preventiva, a exemplo da temporária, depende de provocação (Cunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP, 2020. JusPodivm).
Aliás, a questão não é somente analisar se existe exceção à regra geral; a controvérsia chega a ponto de verificar se determinadas situações que autorizam a preventiva constituem mesmo ‘exceção’ à proibição de o juiz agir de ofício. Vamos lá.
Comecemos pela mais emblemática: a conversão do flagrante em preventiva, nos termos do art. 310, inciso II do CPP.
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: […]
II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou […]
Diante deste dispositivo, boa parte da doutrina, talvez a maioria, vai continuar ‘batendo na mesma tecla’: o juiz, para fazer essa ‘conversão’ (que na realidade configuraria uma decretação de preventiva), depende, necessariamente, da provocação de algum legitimado (autoridade policial ou MP).
Ousamos discordar. E mais, não vemos nisso propriamente uma ‘exceção’ à regra geral.
Antes de qualquer coisa, o que significa agir de ofício? Na linguagem forense, segundo a tradicional lição de De Plácido e Silva, a expressão ex officio, é usada para “o que se faz ou se executa por iniciativa própria, sem pedido de alguém, somente porque se está na obrigação ou no dever legal de assim proceder” (Silva, D. P. 2005. Vocabulário jurídico, 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense).
A locução tem relação com um postulado maior e mais abrangente: ne procedat judex ex officio, que concretiza a regra da inércia, estabelecendo que a jurisdição só deve ocorrer mediante provocação. Ao juiz não é dado escolher ou ‘ir atrás’ dos casos que pretende decidir; a tutela judicial deve ser instada por outrem. Claro que isso tangencia a imparcialidade; ou, melhor, a inércia tem como ‘pano de fundo’ a imparcialidade. Este princípio estaria fulminado, caso o magistrado pudesse eleger os casos em que atua e/ou tomar decisões sponte propria.
Então, observadas essas definições, quando o juiz analisa o flagrante não está, propriamente, agindo de ofício. Pode ele aplicar alguma medida cautelar (inclusive converter a prisão em preventiva) e não precisa, necessariamente, de requerimento, representação ou mesmo concordância de outras autoridades ou partes para isso.
Repare que o magistrado não ‘escolheu’ o caso para sua atuação e não ‘tomou iniciativa’ para nada, não violou a inércia; ao contrário, foi formalmente instado ou provocado pela autoridade policial que, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, LXII, LXV) e da lei (art. 306 do CPP), encaminhou o auto de prisão em flagrante. A comunicação e o encaminhamento do auto, convenhamos, é formal e de lei exigida, inclusive submetida a distribuição para efeito de firmar a competência. Não é um ato qualquer, sem regramento ou de mera discricionariedade das autoridades envolvidas – tem razão, valor e forma.
Nesse sentido já era a opinião de Francisco Saninni Neto, após a reforma de 2011:
Salientamos que essa espécie de prisão preventiva não configura uma exceção à regra de que o Juiz não pode decretar essa cautelar de ofício durante a fase pré-processual.
Entendemos que nessa modalidade de prisão preventiva, o auto de prisão em flagrante funciona como uma espécie de representação da Autoridade Policial. Diferentemente do Ministério Público, por exemplo, que requer a prisão preventiva, o Delegado de Polícia “representa” pela decretação da medida. Esta representação objetiva, justamente, levar ao conhecimento do Juiz os fatos que fundamentam a adoção desta extrema ratio.
Sendo assim, pode-se afirmar que o auto de prisão em flagrante possui a mesma função, servindo para dar ciência ao Magistrado sobre os fatos criminosos ocorridos, que, eventualmente, exigem a decretação da prisão preventiva.
Por tudo isso, concluímos que, ao converter o flagrante em prisão preventiva, o Juiz não age de ofício, uma vez que está sendo provocado a se manifestar por meio do auto de prisão em flagrante, que como uma medida pré-cautelar, expõe o preso e as circunstâncias de sua prisão, à análise do Poder Judiciário, para que este órgão decida sobre a necessidade da medida a ser adotada.[3]
Perceba. No que se refere à ‘representação’ de autoridade policial para efeito de decretação de uma medida cautelar qualquer, mais interessam os fatos em si, que são narrados e levados ao juiz, do que propriamente os argumentos jurídicos ou mesmo o pedido (lembre-se da fungibilidade das medidas cautelares). O enquadramento jurídico é dado pelo juiz, faz parte da sua atividade essencial (jurisdictio).
Com isso podemos concluir que, realmente, não existe grande diferença entre uma representação de prisão preventiva, propriamente dita, com a atividade do delegado que lavra um ato de prisão em flagrante e o submete ao juiz. Pior, a lavratura do flagrante restringe ainda mais e de forma sumária a liberdade individual do agente, fazendo necessária e inadiável a intervenção judicial, nos termos dos incisos LXV e LXVI do art. 5º da Constituição Federal.
Duas conclusões parciais, até agora:
Cabe ao juiz, por imperativo constitucional e de lei, como tutor da liberdade individual, agir, mesmo que seja para ‘adequar’ a medida. Sim, porque o preso já está submetido a uma medida cautelar (flagrante), que pode ser desnecessária ou inadequada (art. 282, I e II, CPP). E tudo, até então, aconteceu sem qualquer iniciativa do juiz, sem que ele em nada interferisse e sem que sua vontade fosse observada para escolha do caso que lhe foi submetido.
Note-se, inclusive, que o art. 321 do CPP impõe ao juiz a ‘obrigação’ de conceder liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares, e nada fala sobre contraditório ou vista ao Ministério Público. Essa incumbência de ‘tutor maior’ das liberdades individuais tem amparo na Constituição Federal (art. 5º, inc. LXVI).
Pois bem. É por essa obrigação de lei, seja do art. 310, seja de outras disposições, que a jurisprudência persiste em dizer que que o juiz podia, pode e poderá converter o flagrante, mesmo ‘de ofício’, em prisão preventiva.
Dizemos ‘podia’ porque antes do Pacote Anticrime esse já era o entendimento consolidado dos tribunais superiores, resguardando autonomia para a decisão do juiz na análise do flagrante, permitindo a prisão preventiva independentemente da manifestação do Ministério Público. Prova disso é a tese nº 10 do Jurisprudência em Teses do STJ:
10) Não há nulidade na hipótese em que o magistrado, de ofício, sem prévia provocação da autoridade policial ou do órgão ministerial, converte a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal – CPP.
Considere que a vedação de o juiz agir ex officio já existia na época (para a fase pré-processual), antes do advento da Lei 13.964/2019.
Afirmamos que ‘pode’ porquanto o Supremo Tribunal Federal, mesmo depois do Pacote Anticrime, está mantendo o entendimento:
PRISÃO PREVENTIVA – FLAGRANTE – CONVERSÃO DE OFÍCIO – ILEGALIDADE – AUSÊNCIA. Atendidos os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, a conversão de flagrante em preventiva independe de provocação do Estado-acusador ou da autoridade policial. PRISÃO PREVENTIVA – TRÁFICO DE DROGAS – GRADAÇÃO. A gradação do tráfico de drogas revela estar em jogo a preservação da ordem pública. (HC 174102, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 18/02/2020, publ. 09-03-2020)
Trecho do voto: “Notem a interpretação sistemática do Código de Processo Penal. O versado no artigo 311 segue o disciplinado no 310, em termos de conversão do flagrante em preventiva. Ao receber o auto de prisão, o Juiz deve, de forma fundamentada, afastá-la – quando ilegal ou cabível a liberdade provisória – ou convertê-la em preventiva. Trata-se de determinação legal cuja observância independe de provocação do Estado-acusador ou da autoridade policial”.
Não é diferente em relação ao Superior Tribunal de Justiça:
O Juiz, mesmo sem provocação da autoridade policial ou da acusação, ao receber o auto de prisão em flagrante, poderá, quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, converter a prisão em flagrante em preventiva, em cumprimento ao disposto no art. 310, II, do mesmo Código, não havendo falar em nulidade. (RHC 120.281/RO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 05/05/2020).
[…] V – Quanto à alegação de constrangimento ilegal, em razão da prisão preventiva ter sido decretada de ofício, verifica-se que o MM. Magistrado de primeiro grau determinou a segregação cautelar do ora recorrente em estreita observância ao art. 310, inciso II, do Código de Processo Penal, sendo assim, não há que se falar em constrangimento ilegal diante da decretação da prisão preventiva do recorrente, vez que resultante de expressa determinação legal. (RHC 121.791/RS, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 11/02/2020).
Dizemos que ‘poderá’, pois o Projeto de Lei nº 156/2009, do novo Código de Processo Penal, tem a seguinte redação que, no parágrafo único, excepciona a situação de prisão para efeito de aplicação ‘de ofício’ de medidas cautelares:
Art. 525. […] Parágrafo único. Durante a fase de investigação, a decretação depende de requerimento do Ministério Público ou de representação do delegado de polícia, salvo se a medida substituir a prisão ou outra cautelar anteriormente imposta, podendo, neste caso, ser aplicada de ofício pelo juiz.[5]
O que estamos dizendo aqui é que esse sempre foi e deve continuar sendo o entendimento. O legislador, aparentemente, quer isso e a jurisprudência caminha nesse sentido.
Esse entendimento (de desnecessidade de provocação para a decretação de prisão preventiva ou de outra medida cautelar quando do flagrante) vai ao encontro do que a Lei 12.403/2011 procurou estabelecer: um procedimento absolutamente abreviado de comunicação, conhecimento e avaliação da prisão em flagrante, de modo que o preso possa ser imediatamente solto, se for o caso com a aplicação de medida cautelar, ou, na pior hipótese, permanecer em custódia, mas diante de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (art. 5º, inc. LXI, Constituição Federal).
Analisando contextualmente a Lei 12.403 (essa questão começou lá no ano de 2011), fica claro que ela pretendeu que prisão provisória, no Brasil, só tivesse sobrevida mediante ‘ordem judicial’ e não como mera consequência de autuação administrativa (flagrante).
Ao se entender em sentido contrário (que o juiz não pode agir ‘de ofício’ nos casos de flagrante), considerando que os autos não costumam vir acompanhados de representação, via transversa vai se transferir o poder de dar ordem escrita de prisão para o órgão encarregado da acusação no processo penal (Ministério Público), que, claro, não é ‘judiciário’ como estabelece a Constituição. Sim, porque dessa forma ou o Ministério Público requer a prisão preventiva ou, necessariamente, o juiz terá de soltar aquele que se encontra preso em flagrante, sem a aplicação de qualquer medida cautelar. Em outras palavras: só terá ordem escrita de prisão – embora, claro, o juiz possa entender que é o caso de indeferimento – o agente em relação ao qual o Ministério Público se manifestar nesse sentido diante do auto de flagrante.
Se pensarmos que nos casos de flagrante haverá necessidade de pedido para que o juiz aplique determinada medica cautelar (seja na audiência de custódia ou fora dela), estaremos deixando nas mãos do Ministério Público ou da Polícia a definição da medida que será aplicada em caso de necessidade. Evidente que isso não é razoável: deixar os órgãos encarregados da investigação ou da acusação resolverem qual a medida a ser aplicada dentre aquelas do art. 319. Cautelares são inerentes à atividade jurisdicional, em qualquer ramo do Direito, mais ainda no processo penal.
E mais. Pode o Ministério Público se postar contrariamente à prisão preventiva e requerer a liberdade provisória. Esse requerimento, evidentemente, não pode vincular o juiz, sob pena de violação da livre convicção.
Quando a lei vedou a iniciativa do juiz para decretar medida cautelar, a ideia foi salvaguardar o sistema acusatório, impedir que o juiz, de ofício, interferisse na atividade investigatória/acusatória. Não é isso que o magistrado faz, nem de longe, quando analisa o auto de prisão em flagrante. Neste momento, a atuação é essencialmente voltada à urgente tutela da liberdade individual.
Embora esteja aberta a possibilidade de o Ministério Público requerer a medida pertinente (é comunicado da prisão e recebe cópia do auto de flagrante), há se entender que a manifestação da Promotoria não vincula o juiz, originária e verdadeiramente detentor do poder cautelar e tutor da liberdade individual.
Um outro argumento que permite a mesma conclusão é trazido pelo xará Leonardo Barreto Moreira Alves e Higyna Josita[6]:
O segundo argumento a sustentar esse posicionamento é o fato de que o § 2º do artigo 310 afirma que o juiz deverá denegar a liberdade provisória se verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito. Deixando de lado a discussão a respeito da constitucionalidade deste dispositivo e fixando-se apenas na intenção do legislador com esta norma, temos que esse parágrafo está diretamente subordinado ao caput, ou seja, com o tema da audiência de custódia, de modo que ele autoriza o juiz, nessa audiência, a indeferir o pedido de liberdade feito por qualquer das partes, inclusive pelo MP. Ora, o que o juiz faz quando indefere o pedido de liberdade é converter o flagrante em preventiva, de modo que existe autorização legislativa para que o juiz contrarie a manifestação ministerial, o que, mudando as palavras, seria “decretar prisão de ofício”.
Diante do que vimos, para solucionar o impasse, há se distinguir entre:
Nessa última hipótese não há, propriamente, uma atuação de ofício; pelo menos não há ‘iniciativa’ do juiz ou violação à inércia. Ele é provocado, através da comunicação formal do flagrante, para avaliar o caso como determina a Constituição Federal (art. 5º, LXII, CF e art. 306, CPP), essencialmente para tutelar interesse que é do cidadão – garantia da liberdade.
Não há propriamente a ‘decretação’ de uma prisão antes inexistente; o que ocorre é a ‘conversão’ de prisão provisória já existente. Muda-se a natureza do ‘título prisional’ (de flagrante para preventiva), mas não se inova na situação de fato do agente (que estava e continua preso).
As medidas cautelares aplicadas (‘de ofício’) nesses casos tutelam o próprio interesse do cidadão: se forem diversas da prisão para efeito de soltá-lo, restringindo o quanto menos (e pelo menor tempo possível) a sua liberdade; se for a preventiva, para efeito de ter a garantia de que sua prisão é legal e constitucionalmente estabelecida por quem de direito (juiz), de forma escrita e fundamentada, para que fiquem claras as razões que a motivam. A ciência do motivo da prisão é direito expresso do preso (art. 306, § 2º, CPP), sistematicamente reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
As supostas exceções do CPP à proibição de o juiz decretar preventiva ‘de ofício’ não param por aí. Vejamos o que diz o art. 316:
Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Perceba que a parte final do dispositivo, permite expressamente que o juiz, “de ofício”, novamente decrete preventiva se sobrevierem razões para isso. Ou seja: a lei permite que o juiz restabeleça a prisão preventiva, mesmo sem provocação para tanto. Não é diferente em relação a medidas cautelares diversas, nos termos do § 5º do art. 282 do CPP.
Mais uma vez, não vemos nisso, exatamente, uma atividade de ofício. O juiz não está, propriamente, tomando a iniciativa da medida. Isso porque o restabelecimento da prisão acontece somente quando essa medida já foi tomada anteriormente. E, se foi tomada anteriormente, necessariamente algum legitimado provocou isso antes, dentro da mesma persecução penal. Nesse sentido, Aury Lopes Jr:
Situação distinta, mas que poderá gerar alguma confusão com a nossa afirmação, está no caput do art. 316: “O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”. Primeiro ponto é: para revogar a prisão preventiva ele pode agir de ofício, e o faz como garantidor da legalidade. Segundo ponto: mas então o juiz pode prender de ofício? Não, a situação prevista neste artigo não autoriza essa conclusão, pois não se trata de prisão decretada originariamente de ofício, senão de um imputado que está em liberdade e descumpre as medidas cautelares diversas ou sobrevierem razões que a justifiquem. Mas aqui ele não decreta originariamente, senão que ‘novamente’ a decreta. O pedido originário foi feito, depois o imputado é solto e então descumpre os requisitos impostos e o juiz volta a decretá-la. (Júnior A. L., Direito processual penal, 17ª ed. 2020. Saraiva)
Quando já existiu uma provocação, mesmo que por motivo outro; quando o sujeito já esteve preso preventivamente, dentro da mesma persecução penal, a opção do legislador foi permitir ao juiz agir, mesmo que sem ‘nova’ provocação, o restabelecimento da medida cautelar mais drástica.
Em arremate: em ambas as situações aqui tratadas (conversão do flagrante e restabelecimento da preventiva) não vemos nenhuma atividade propriamente ‘de ofício’ do juiz; mesmo que assim se entenda (como a jurisprudência), a lei admite isso, ou, o dever de atuação legal impõe a atuação oficiosa para determinadas situações excepcionais.
Para nós não há, propriamente, exceção nessas situações; para a jurisprudência, há exceção com base em determinação legal. De uma forma ou de outra o resultado é o mesmo: pode haver conversão ou restabelecimento da prisão preventiva pelo juiz.
Detalhe final: aqui abordamos duas ‘exceções’ de lei constantes do CPP (conversão do flagrante e restabelecimento da preventiva). Podemos encontrar outras em leis esparsas (por exemplo, art. 20 da Lei 11.340/2006) ou mesmo fruto da interpretação da doutrina (como no caso do art. 387, § 1º do CPP, com alguns defendendo a possibilidade). Porém, deixamos essas e eventuais outras situações, para abordagem futura. Aqui já falamos demais.
[1] E aqui não vamos abordar se isso está correto ou não; se a premissa é acertada ou equivocada. Vamos tratá-la tal como apregoada e amplamente reconhecida pela doutrina.
[2] E talvez nos incluamos entre eles.
[3] https://jus.com.br/artigos/19635/especies-de-prisao-preventiva-e-a-lei-n-12-403-2011
[4] Aqui não vamos explicitar sobre esse ato para não perder o foco.
[5] O projeto está ‘adormecido’, mas existe e está disponível em: https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1638152&filename=PL+8045/2010.
[6] https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/opiniao-juiz-decretar-prisao-preventiva-oficio
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Excelente explanação, professor. Muito obrigado por compartilhar o seu entendimento sobre esse assunto meio polêmico. Esclareceu muito as coisas para mim.
Excelente artigo! Parabéns!