Olá turma, como estão os estudos? Estamos aqui para comentar um tema importante na jurisprudência do STF: o conceito de serviços para fins de incidência do Imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS ou ISSQN).
Conforme a doutrina especializada[1], o ISS é o imposto outorgado pelo art. 156, III, da Constituição (CF/1988) aos municípios, sendo conceituado como o “imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.
O ISS tem como fato gerador a prestação dos serviços listados no anexo da Lei Complementar n. 116/2003. Porém, para o correto entendimento acerca desse imposto, deve-se atentar que não incide sobre determinados serviços objeto de tributação pelo ICMS, de competência dos Estados (serviço de transporte interestadual e intermunicipal de passageiros, bem como de comunicação).
Ainda segundo Leandro Paulsen[2], o ISS não incide também sobre serviços públicos típicos, prestados por entes da administração pública direta, autarquias e fundações públicas, vinculados a suas finalidades essenciais ou delas decorrentes, não regidos por normas de direito privado e não remunerados por tarifas, nos termos do art. 150, VI, “a”, §§ 2º e 3º, da CF.
Antecipando o exame da jurisprudência do STF, esta Corte também excluiu da incidência do ISS os serviços prestados por empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços em regime de monopólio, sem concorrência no mercado privado.
Lembra ainda Leandro Paulsen[3] que “não incide ISS na exportação de serviços, na prestação de serviços em relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, diretores e membros de conselho consultivo ou de conselho fiscal de sociedades e fundações, bem como dos sócios-gerentes e dos gerentes-delegados e, por fim, sobre o valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, sobre o valor dos depósitos bancários e sobre o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras, nos termos do art. 2º , I, da Lei Complementar n. 116/03”.
Contudo, diante da expressão utilizada pelo texto constitucional para conceituar o ISS (serviços de qualquer natureza), o STF tem entendido que a Carta Constitucional autoriza uma interpretação de maior âmbito semântico, levando a uma “ampliação da competência tributária na incidência do ISSQN” (RE nº 651.703-RG/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 29/09/2016, p. 26/04/2017).
Nesse contexto, a discussão que reiteradamente chega ao STF está relacionada às hipóteses de atividades econômicas mistas, as quais envolvem, em termos jurídicos, prestações de dar e de fazer simultaneamente.
Com efeito, classicamente, o Direito Civil tem distinguido as obrigações jurídicas conforme caracterizem prestações de dar ou de fazer.
Washington de Barros Monteiro[4] as diferenciava, em síntese, nos seguintes termos: “se o devedor tem de dar ou de entregar alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é de dar; todavia, se, primeiramente, tem ele de confeccionar a coisa para depois entregá-la, se tem ele de realizar algum ato, do qual será mero corolário o de dar, tecnicamente a obrigação é de fazer”.
Partindo dessa diferenciação civilista, diversas entidades associativas, representantes dos mais diferentes seguimentos econômicos, têm proposto ao STF a impossibilidade de incidência do ISS sobre determinadas atividades econômicas que, na visão delas, configurariam obrigações de dar, sendo que, por definição, o termo “serviços” adotado pela CF/88 estaria relacionado somente às prestações de fazer.
Esse raciocínio teria como fundamento o art. 110 do CTN:
Veremos que, num primeiro momento, a jurisprudência do STF adotou a referida diferenciação para fins de incidência do ISS e, progressivamente, foi evoluindo para a superação desse entendimento, a favor de uma leitura do texto constitucional desvinculada do direito civil.
Vejamos as justificativas apresentadas pelo STF.
A discussão na jurisprudência do STF, acerca do conceito de serviços para fins de incidência do ISS, iniciou-se com a Corte adotando a diferenciação civilista entre obrigações de dar e de fazer, considerando que “o tributo municipal somente pode incidir sobre obrigações de fazer” (RE n. 446.003-AgR/PR)[5].
Essa orientação surgiu no STF no ano 2000, a partir do RE n. 116.121/SP[6], no qual se decidiu que “Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis”.
Assim, o Supremo Tribunal decidiu também que o ISS tem incidência sobre o contrato de arrendamento mercantil (leasing financeiro), que configura “contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação de dar. E financiamento é serviço […]” (RE 592.905/SC[7]).
Nesses termos, o STF afastou a incidência do ISS sobre a locação em geral de bens móveis (obrigação de dar), vindo a consolidar esse entendimento na Súmula Vinculante n. 31: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) sobre operações de locação de bens móveis” (publicada em 17/2/2010).
Ainda no ano de 2010, o STF, em sede de repercussão geral, fez um sutil esclarecimento em seu entendimento vinculante, a fim de deixar explícito que “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) sobre operações de locação de bens móveis, dissociada da prestação de serviços (Tema 212[8]).
Acerca da locação de bens móveis, o entendimento atual do STF ainda mantém essa “sútil” diferenciação, como pode ser observado no seguinte julgado:
Com base na incidência do ISS sobre as denominadas “obrigações mistas”, a jurisprudência do STF evoluiu no sentido de que “A classificação das obrigações em “obrigação de dar”, de “fazer” e “não fazer”, tem cunho eminentemente civilista” e “não é a mais apropriada para o enquadramento dos produtos e serviços resultantes da atividade econômica” (RE 651.703/PR[9]).
Nesse julgado, o STF consolidou “uma intepretação mais ampla do texto constitucional quanto ao conceito de ‘serviços’, desvinculado do conceito de ‘obrigação de fazer’” e decidiu assim para evitar uma intepretação constitucional a partir da legislação ordinária, adotando um conceito econômico de “serviços” e não um conceito do Código Civil.
Ademais, essa interpretação ampliativa é possível também porque, ainda nos termos da jurisprudência do STF, a lista de serviços anexa à LC 116/2003, que positiva os serviços passíveis de tributação do ISS, tem caráter taxativo, “admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva” (RE 784.439/DF[10]).
Assim, para a jurisprudência atual do STF, o conceito de prestação de serviços, para fins de incidência do ISS, “não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil”, estando relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades imateriais, prestados com habitualidade e intuito de lucro, “podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador” (RE 651.703/PR, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 29-09-2016, PUBLIC 26-04-2017).
É justamente essa conjugação, entre o oferecimento de uma utilidade ao tomador dos serviços e a entrega de um bem, que caracteriza as chamadas obrigações mistas, as quais, reiteradamente, ensejam discursões no STF acerca da incidência do ISS, tendo a Suprema Corte, com base em sua nova orientação, em regra, admitido a cobrança do referido imposto municipal.
Com efeito, pode-se assentar que, “de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, o ISS incide sobre atividades que representem tanto obrigações de fazer quanto obrigações mistas, que também incluem uma obrigação de dar” (RE 603.136/PR, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 29-05-2020, PUBLIC 16-06-2020).
Confiram-se:
Sobre esse último precedente (ADI 5.764/DF), ficou explícito que sua fundamentação partiu do entendimento aplicado pelo STF, segundo o qual, “Nas relações mistas ou complexas em que não seja possível claramente segmentar as obrigações de dar e de fazer – seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira –, estando a atividade definida em lei complementar como serviço de qualquer natureza, nos termos do art. 156, III, da Constituição Federal, será cabível, a priori, a cobrança do imposto municipal”.
Nesse contexto, o Supremo reconhece a constitucionalidade também do subitem 3.04 da lista anexa à LC n. 116/2003, que estabelece a cobrança do ISS na “Locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza”[16].
Enfim, podemos sintetizar o entendimento mais recente do STF, acerca do conceito de serviços, para fins de incidência do ISS, nos seguintes termos: “A lei complementar a que se refere o art. 156, III, da CRFB/88, ao definir os serviços de qualquer natureza a serem tributados pelo ISS, a) arrola serviços por natureza; b) inclui serviços que, não exprimindo a natureza de outro tipo de atividade, passam à categoria de serviços, para fim de incidência do tributo, por força de lei, visto que, se assim não considerados, restariam incólumes a qualquer tributo; e c) em caso de operações mistas, afirma a prevalência do serviço, para fim de tributação pelo ISS”[17].
[1] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. São Paulo: Saraiva, 11. Ed., 2020. P. 619.
[2] Idem.
[3] Ibidem, p. 620.
[4] Curso de Direito Civil. Obrigações. São Paulo: Saraiva, 39. Ed., 2003. P. 105.
[5] Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. 30/05/2006, p. 04/08/2006)
[6] Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11-10-2000, DJ 25-05-2001.
[7] Relator(a): EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 02-12-2009, REPERCUSSÃO GERAL – PUBLIC 05-03-2010
[8] Tese em repercussão geral definida no RE 626.706, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 8-9-2010, DJE 179 de 24-9-2010.
[9] Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 29-09-2016, PUBLIC 26-04-2017.
[10] Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29-06-2020, PUBLIC 15-09-2020.
[11] Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 29-09-2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-086 DIVULG 25-04-2017 PUBLIC 26-04-2017.
[12] Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 29-05-2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-149 DIVULG 15-06-2020 PUBLIC 16-06-2020.
[13] Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 01-03-2023 PUBLIC 02-03-2023.
[14] Relator(a): LUIS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 12-09-2023, acórdão pendente de publicação.
[15] Relator(a): ANDRÉ MENDONÇA, Tribunal Pleno, julgado em 02-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 11-10-2023 PUBLIC 16-10-2023.
[16] ADI 3142/DF, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 05-08-2020, PUBLIC 06-10-2020).
[17] Tema 581 da repercussão geral do STF. RE n. 651.703-RG/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 29/09/2016, p. 26/04/2017.
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