Incidente de Deslocamento de Competência

A Emenda Constitucional nº 45/2004 possui enorme relevância para os Direitos Humanos. Além do tratamento especial que conferiu aos tratados internacionais relacionados à matéria, trouxe uma novidade processual interessante, objeto de diversas provas de concurso público: o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC).

Esse expediente processual tem por finalidade deslocar a competência das causas que envolvam graves violações de Direitos Humanos para a Justiça Federal, conforme disciplina do art. 109, §5º, da CF.

5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

Todas as questões judiciais observam uma série de regras de competência, que definem, entre outras coisas, perante que órgão do Poder Judiciário tramitará a ação. Sabemos que a Justiça Eleitoral, Militar e do Trabalho são consideradas “especializadas”, para as quais a CF previu um sistema judicial estruturado e específico. Paralelamente, a “Justiça Comum” se divide em estadual e federal. À Justiça Federal competem as demandas propostas que envolvam, em regra, as “causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes” (art. 109, I, da CF), desde que não sejam matérias de competência das “justiças especializadas”. A competência da Justiça Estadual, por sua vez, é residual, vale dizer, o que não for de competência da Justiça Eleitoral, Militar, do Trabalho e Federal, será de competência do Poder Judiciário Estadual.

As normas de Direitos Humanos podem estar presentes nas mais diversas matérias. Sempre que houver tutela de direitos relativos à dignidade humana, normas de Direitos Humanos deverão ser observadas. A Justiça Eleitoral, por exemplo, é responsável por resolver conflitos que envolvem a capacidade eleitoral ativa e passiva, o pluralismo político, entre outros. Todos esses direitos são humanos de primeira dimensão, conforme classificação doutrinária consagrada. Do mesmo modo, questões cíveis que envolvem reparações por violações aos direitos de personalidade são, também, matéria afetas aos Direitos Humanos. A Justiça do Trabalho, responsável por resolver os conflitos de trabalho entre empregadores e trabalhadores, envolvem cotidianamente os direitos sociais mínimos dos trabalhadores. Esses direitos, em última análise, são direitos humanos de segunda dimensão.

Com os exemplos acima podemos concluir que os direitos protetivos à dignidade da pessoa permeiam todo o ordenamento jurídico e se fazem presentes nos mais diversos órgãos do Poder Judiciário.

Justamente quando envolver ações tramitando em outros órgãos do Poder Judiciário e a questão tratada no processo envolver grave violação aos Direitos Humanos é que surge a possibilidade de aplicação do art. 109, §5º, da CF.

De acordo com o dispositivo mencionado, verificada uma hipótese de grave violação aos direitos humanos, o Procurador-Geral da República (PGR), poderá suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, justamente para assegurar o cumprimento de obrigações firmadas pelo Brasil em tratados internacionais de Direitos Humanos.

Para fins de provas devemos nos atentar para:

  • o IDC poderá ser suscitado em caso de grave violação de direitos humanos;
  • o IDC tem por finalidade assegurar o cumprimento de obrigações firmadas em tratados internacionais de Direitos Humanos;
  • o PGR será o suscitante; e
  • o IDC será analisado no STJ.

Sobre o assunto, leciona Gilmar Mendes: “trata-se de norma que tem por escopo ampliar a eficácia da proteção dos direitos da pessoa humana, especialmente em face de obrigações assumidas pelo Brasil em tratados e convenções internacionais. A possível objeção quanto à intervenção ou restrição à autonomia dos Estados-membros e da Justiça estadual pode ser respondida com o apelo aos valores envolvidos (proteção dos direitos humanos e compromisso da União de defesa no plano internacional) e com o caráter excepcional da medida. O deslocamento de competência somente em casos de extrema gravidade poderá ser objeto de requerimento, por parte do Procurador-Geral da República, e de eventual deferimento por parte do Superior Tribunal de Justiça”.

Sobre o tema, recentemente o STJ firmou o seguinte entendimento:

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO INSERIDO EM CONTEXTO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO. GRAVE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS. CONFIGURAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DECORRENTES DE TRATADO INTERNACIONAL. ESTADO-MEMBRO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES DE APURAR VIOLAÇÕES E RESPONSABILIZAR O(S) CULPADO(S). EXCEPCIONALIDADE DEMONSTRADA. DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA QUE SE MOSTRA DEVIDO.

1. A Emenda Constitucional n. 45, de 31.12.2004, relativa à reforma do Poder Judiciário, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de deslocamento da competência originária para a investigação, o processamento e o julgamento dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte.

2. A Terceira Seção deste Superior Tribunal explicitou que os requisitos do incidente de deslocamento de competência são três: a) grave violação de direitos humanos; b) necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; c) incapacidade – oriunda de inércia, omissão, ineficácia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais e/ou materiais etc. – de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal (IDC n. 1/PA, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005).

3. A violação de direitos humanos que enseja o deslocamento de competência, além de grave, deve ser relacionada a obrigações decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

4. Para o deslocamento da competência, deve haver demonstração inequívoca de que, no caso concreto, existe ameaça efetiva e real ao cumprimento de obrigações assumidas por meio de tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, resultante de inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, proceder à devida persecução penal.

5. A confiabilidade das instituições públicas envolvidas na persecução penal – Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário -, constitucional e legalmente investidas de competência originária para atuar em casos como o presente, deve, como regra, prevalecer, ser apoiada e prestigiada.

6. O incidente de deslocamento de competência não pode ter o caráter de prima ratio, de primeira providência a ser tomada em relação a um fato (por mais grave que seja). Deve ser utilizado em situações excepcionalíssimas, em que efetivamente demonstrada a sua necessidade e a sua imprescindibilidade, ante provas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais e/ou materiais das instituições – ou de uma ou outra delas – responsáveis por investigar, processar e punir os responsáveis pela grave violação a direito humano, em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa, até para não se esvaziar a competência da Justiça Estadual e inviabilizar o funcionamento da Justiça Federal.

7. A ideia de excepcionalidade do incidente não pode, contudo, ser de de grandeza tal a ponto de criar requisitos por demais estritos que acabem por inviabilizar a própria utilização do instituto de deslocamento.

8. O caso dos autos aponta fatores relacionados à região onde ocorreu a morte do Promotor de Justiça estadual Thiago Faria Soares, com indicativos de que o assassinato provavelmente resultou da ação de grupos de extermínio que atuam no interior do Estado de Pernambuco (como tantos outros que ocorreram na região conhecida como “Triângulo da Pistolagem”, situada no agreste pernambucano), bem como ao certo e notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime noticiado.

9. A falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que arrisca comprometer o resultado final da persecução penal, com possibilidade, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e dos executores do citado crime de homicídio.

10. O pedido de deslocamento de competência encontra-se fundamentado em afronta a tratado internacional de proteção a direitos humanos.

O direito à vida, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), é a pedra basilar para o exercício dos demais direitos humanos. O julgamento justo, imparcial e em prazo razoável é, por seu turno, garantia fundamental do ser humano, previsto, entre outros, na referida Convenção, e dele é titular não somente o acusado em processo penal, mas também as vítimas do crime (e a sociedade em geral) objeto da persecução penal, dada a redação ampliativa dada ao inciso LXXVIII do artigo 5º da CF: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem, reiteradamente, asseverado que a obrigação estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos deve ser empreendida pelos Estados de maneira séria e efetiva, dentro de um prazo razoável.

11. No caso vertente, encontram-se devidamente preenchidos todos os requisitos constitucionais que autorizam e justificam o pretendido deslocamento de competência, porquanto evidenciada a incontornável dificuldade do Estado de Pernambuco de reprimir e apurar crime praticado com grave violação de direitos humanos, em descumprimento a obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

12. Incidente de deslocamento de competência julgado procedente, para que seja determinada a imediata transferência do Inquérito Policial n. 07.019.0160.00158/2013-1.1 para a Polícia Federal, sob o acompanhamento e controle do Ministério Público Federal, e sob a jurisdição, no que depender de sua intervenção, da Justiça Federal, Seção Judiciária de Pernambuco. Ainda, determinação para que a tramitação do feito corra sob o regime de segredo de justiça, observada a Súmula Vinculante n. 14, do Supremo Tribunal Federal.

(IDC 5/PE, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/08/2014, DJe 01/09/2014)

 

O aresto acima, além de explicitar um bom exemplo de grave violação dos direitos humanos, minudencia os requisitos do IDC, que foram explicitados pela primeira vez no IDC nº 1, quais sejam:

  1. grave violação de direitos humanos;
  2. necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; e
  3. incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer resposta efetiva.

Dos requisitos acima, os dois primeiros constam expressamente do dispositivo constitucional (art. 109, §5º). O terceiro, por sua vez, denota a excepcionalidade para a utilização do expediente processual, que somente será possível se demonstrada a necessidade e a imprescindibilidade, ante a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer resposta efetiva à violação de direitos humanos perpetrada.

Para finalizar, vejamos duas questões recentes sobre o tema.

 

01 – CESPE/DPE-DF – Defensor Público – 2013

Considerando as disposições constitucionais relativas aos direitos humanos e aos tratados que versam sobre o tema, julgue os itens subsequentes

O procurador-geral da República poderá, ouvido o Conselho Nacional do Ministério Público, suscitar, perante o STF, incidente de deslocamento de competência para a justiça federal quando julgar que o processo envolve grave violação de direitos humanos e exige o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte.

 Conforme alertamos acima, a maioria das questões tratam da redação do art. 109, §5º, da CF. A presente assertiva está incorreta, uma vez que não há necessidade de o PGR consultar o CNMP para suscitar o IDC. Ademais, incorre em erro assertiva também ao dispor que o IDC será suscitado no STF, posto que é expresso o texto constitucional ao mencionar que o incidente é suscitado perante o STJ.

 

02 – PGR – Procurador – 2013

Segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça expresso no voto do relator do Incidente de Deslocamento de Competência nº 1 – PA, a grave violação de direitos humanos que dá ensejo à iniciativa do procurador-geral da república para instauração do incidente

a) deve ser articulada apenas com a ameaça efetiva e real de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, como condição de admissibilidade; 

b) deve ser aferida, como condição de admissibilidade, em articulação com considerações sobre a necessidade e a imprescindibilidade do deslocamento de competência para a garantia do cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, em decorrência da observância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade;

c) prescinde de melhor definição legislativa, configurando, por isso, o art. 109, V-A, da Constituição Federal, norma de eficácia contida; 

d) deve ser articulada, como condição de admissibilidade, com a necessidade de se resguardar, sempre que possível, o juízo natural estadual, somente se justificando o deslocamento quando houver pedido das autoridades estaduais, dando conta de sua incapacidade de garantir a prestação jurisdicional em tempo razoável com todas as garantias processuais.

 

A presente questão, por seu turno, exige os requisitos do IDC, que destacamos acima. Vejamos cada uma das alternativas:

A alternativa A está incorreta, posto que a ameaça de descumprimento das obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos é uma das condições, não a única.

A alternativa B está correta, conforme requisitos fixados no IDC nº 1.

A alternativa C está incorreta, posto que a norma constante do art. 105, V-A, que trata da competência dos juízes federais para julgar as causas de graves violações de direitos humanos, em caso de deslocamento de competência, é norma de eficácia plena.

Por fim, a alternativa D também está incorreta tendo em que vista que o pedido não decorrerá das autoridades estaduais, mas do PGR.

As questões acima bem ilustram como o assunto poderá ser exigido em provas de concurso público. Registre-se, finalmente, que a temática poderá ser exigida tanto em provas de Direitos Humanos, como em provas de Direito Constitucional.

Informo-lhes, ainda, que a segunda aula do nosso curso já encontra-se disponível. Caso haja interesse, acesse: https://www.estrategiaconcursos.com.br/curso/direitos-humanos-p-aft-prof-ricardo-torques-5383/

 

Bons estudos a todos!

Ricardo Torques

Professor de Direitos Humanos

Ricardo Torques

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