Caros estrategistas, saudações! O objetivo deste texto é esclarecer sobre a impenhorabilidade da conta poupança, e como a doutrina e jurisprudência têm aplicado os fundamentos deste conceito.
Para melhor iniciar esta discussão, é preciso verificar onde esse conceito é plenamente aplicável. No mundo inteiro, sempre houve, há e haverá conflitos entre partes que reclamam um direito que elas possuem contra outra parte. Esses conflitos podem envolver a disputa por ocasião de uma quebra de contrato, podem se dar em função de um abuso que alguém reclama ter sofrido ou na iminência de sofrer de outra parte.
Enfim, são numerosas e diversas as ocasiões que podem gerar a necessidade de uma pessoa física (natural) ou jurídica (entidades, empresas, instituições, etc.) de buscar a resolução de seus conflitos no judiciário. E o que regulamenta esses procedimentos é o Código de Processo Civil, hoje regulamentado pela lei n. 13.105/2015.
É importante ressaltar que, durante o rito do processo civil, é realizada a ação pela reclamação judicial e ela é formalizada pela ação judicial. Em uma ação judicial, alguém reclama ao Poder Judiciário, pedindo ao juiz a análise do seu caso, no qual duas partes estão em conflito sobre um direito. Em um exemplo: locador de um imóvel aluga um apartamento a um locatário, e no contrato de aluguel há uma cláusula sobre reajuste anual que o locatário, depois de um ano, entendeu abusiva. O locatário vai entrar com uma ação, reclamando do índice deste reajuste.
E então? Quem está certo? Quem vai levar? Isso vai depender da análise dos elementos deste caso, como o de milhares (ou milhões) de ações. No direito brasileiro, uma coisa é certa: uma vez promovida a ação judicial, um juiz deverá analisar o caso e decidir, com base nos elementos trazidos dentro desta ação (o contrato em si, outros índices que possam ser utilizados, evidências de que o índice adotado não representa a realidade, etc.).
O que precisa ficar claro é que nesta ação o juiz decidirá, ainda que não exista lei que discipline a questão, pois a Constituição Federal de 1988 (CF/88) assim determina, no artigo 5.o: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
Uma circunstância comum sobre todas as ações judiciais, em geral, é que elas possuem as chamadas custas judiciais – pois é evidente que o processo judicial, seja ele qual for, não é gratuito. Exceto algumas possibilidades possibilitadas pela CF/88 – o pedido de habeas corpus, ou o pedido de habeas data – na maior parte das situações todo processo envolve um pleito passível de ser avaliado em valor monetário e mais as custas judiciais relativas a esta ação.
As ações judiciais possuem durações variadas, muitas vezes em função do pleito em si, da análise das situações das ações e que envolvem convocações das partes para apresentarem documentalmente e oralmente suas razões e contrarrazões (os argumentos da outra parte, contra o pedido da primeira). As ações judiciais podem variar de dias, semanas, meses, anos ou até mesmo décadas.
O judiciário no Brasil possui decisões que, em geral, dão possibilidade de recursos à parte que perde. E isso, no sistema judiciário brasileiro, leva a questão a uma instância superior, podendo chegar aos tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF). Entre as instâncias do processo, pode haver a cobrança das custas para que o processo possa seguir adiante.
Ou quando um recurso não é utilizado pela outra parte, ou quando a ação é decidida no STF, chega-se a decisão judicial transitada em julgado – o que quer dizer que não há mais possibilidade de recurso – e o processo judicial se encerra. Nas duas situações, é necessário recolher as custas judiciais. Entretanto, no caso do encerramento da ação, o lado perdedor pode não ter os recursos para arcar com as custas e indenização para quem ganhou a ação.
Neste caso, surge a penhora judicial, que é a tomada de recursos da parte que deve, para satisfazer a dívida, promovida pelo poder judiciário. Em todos os tipos de processos judiciais isso ocorre: no processo trabalhista movido pelo empregado contra a empresa que desrespeitou seus direitos ou não o pagou corretamente; no processo fiscal no qual o estado reclama impostos devidos por um contribuinte que não os pagou; em um processo de danos morais movido por uma pessoa natural constrangida por uma matéria jornalística que a prejudicou enormemente.
A penhora é a forma que o processo civil encontra de efetivar a resolução do conflito exposto na ação. É uma das formas de possibilitar que o processo tenha a conclusão e a parte vencedora seja ressarcida das custas e indenizações a que tenha direito. Mas a penhora não é um conceito absoluto. Ela deve ser feita de maneira a não impedir ou retirar da parte perdedora os meios de sua sobrevivência.
O Código de Processo Civil de 1939 (CPC/1939), do decreto-lei n. 1.608/1939, já trazia esta figura da não penhorabilidade. Este CPC traz em seu artigo 942: “Art. 942. Não poderão absolutamente ser penhorados:
I – os bens inalienáveis por fôrça de lei;
II – as provisões de comida e combustíveis necessários à manutenção do executado e de sua família durante um mês;
(…)
IV – uma vaca de leite e outros animais domésticos, à escolha do devedor, necessários à sua alimentação ou a suas atividades, em número que o juiz fixará de acordo com as circunstâncias;
(…)
VI – os socorros em dinheiro ou em natureza, concedidos ao executado por ocasìão de calamidade pública;
(…)
VIII – as pensões, tenças e montepios percebidos dos cofres públicos, de estabelecimento de previdência, ou provenientes da liberalidade de terceiro, e destinados ao sustento do executado ou da família;
IX – os livros, máquinas, utensílios e instrumentos necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão;
X – o prédio rural lançado para efeitos fiscais por valor inferior ou igual a dois contos de réis (2:000$0), desde quo o devedor nele tenha a sua morada e o cultive com o trabalho próprio ou da família;
(…)
XII, os fundos sociais, pelas dívidas particulares do sócio, não compreendendo a isenção os lucros líquidos verificados em balanço;
(…)
XIV, seguro de vida;”
Observem os itens em negrito. É bastante claro que o CPC/1939 foi aprovado no contexto de um país eminentemente rural em sua história, com uma industrialização ainda incipiente. O próprio conceito de poupança não era bem difundido, mas as economias familiares dela decorrentes podem muito bem fazer frente a imprevistos, emergências, calamidades, como pode ser deduzido dos incisos II, IV, VI e VIII.
Os CPCs seguintes, de 1973 (CPC/1973), da lei n. 5689/1973, e o CPC atual, de 2015, da lei n. 13.105/2015, preenchem esta lacuna, conforme se verifica no artigo 833: “São impenhoráveis:
I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II – os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
III – os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º ;
(…)
VI – o seguro de vida;
(…)
X – a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
(…)
§ 1º A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º .
§ 3º Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária. “
Desta forma, vê-se que os CPCs seguintes compreenderam a caderneta de poupança como mais uma das possibilidades de impenhorabilidade, pois, em geral, trata-se de recursos que não possuem caráter especulativo, mas de reserva para contingências, emergências, ou mesmo gastos futuros.
Com o advento da CF/88, houve um conceito que foi sendo gradualmente ampliado, o conceito da dignidade humana, que se refere a assegurar uma vida digna a todas as pessoas. Em que pese essa concepção de dignidade humana, o judiciário tem estendido a algumas situações além da conta poupança essa impenhorabilidade em jurisprudência.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2014, em jurisprudência, o tribunal da cidadania decidiu que a impenhorabilidade da poupança pode ser estendida, por interpretação extensiva, a outras formas de investimento. Desta forma, é impenhorável a quantia de até 40 salários mínimos depositada em fundo de investimento, desde que seja a única aplicação financeira do devedor e não haja indícios de má-fé, abuso, fraude, ocultação de valores ou sinais exteriores de riqueza.
Entretanto, se a pessoa recebe a verba trabalhista e deposita esse dinheiro em um fundo de investimento, por longo período, o guardião da lei federal entendeu que a quantia perderá o caráter de impenhorabilidade do IV, já que não foi utilizada para suprimento de necessidades básicas do devedor e sua família. Ainda assim, essa verba poderá ser considerada impenhorável com base no inciso X, até o limite de 40 salários mínimos, desde que seja a única aplicação financeira do devedor e não haja indícios de má-fé, abuso, fraude, ocultação de valores ou sinais exteriores de riqueza.
Em uma jurisprudência posterior, o STJ repetiu este posicionamento, sobre a extensão da impenhorabilidade da poupança (incluindo fundos de investimento) – mas aplicando o limite dos 40 salários mínimos. E se a pessoa possuir duas poupanças, uma com 35 salários mínimos e a outra com 15 salários mínimos? Essa somatória corresponde a 50 salários mínimos, e no entendimento do STJ, a penhora poderá acontecer, desde que preserve o executado (o que tem que pagar) com 40 salários mínimos (soma-se todos os recursos investidos, e tudo que exceder os 40 salários mínimos é penhorável).
Em uma ação posterior no tribunal da cidadania houve mais uma jurisprudência sobre a impenhorabilidade, desta vez sobre importâncias recebidas por beneficiário de seguro de vida, que, apesar de já estar previsto no CPC, foi mais uma vez estendido o conceito da impenhorabilidade da poupança. Neste caso houve um aparente conflito entre duas correntes no STJ: uma delas defendia a impenhorabilidade estabelecida no CPC. Outra corrente dentro do tribunal defendeu a necessidade de honrar os débitos com os credores. A solução encontrada para apaziguar estas correntes, na produção da jurisprudência, foi aplicar por analogia o conceito de impenhorabilidade da poupança – no que os 40 salários mínimos correspondem ao que o legislador entendeu razoável para o sustento do devedor e da família. E nesta decisão se aplicou a impenhorabilidade ao seguro recebido até esse limite.
A prestação judicial muitas vezes é necessária, e muitas vezes a única forma de resolver conflitos que aparentemente não possuem solução. O sistema judicial brasileiro utiliza a jurisdição uma: isso significa que o papel que o judiciário exerce é importantíssimo, tendo um caráter de definitividade.
A entrada da CF/88 reforçou este caráter da decisão judicial. Com a evolução da sociedade, mais alguns fatores devem ser sopesados para uma resolução judicial mais eficiente, eficaz, efetiva e célere: a dignidade da pessoa humana, o respeito aos contratos, a segurança jurídica, o desestímulo a condutas fraudulentas e a outras atitudes que demonstrem o abuso da boa-fé.
A impenhorabilidade da poupança visa a manter essa dignidade e a jurisprudência reconhece isso. Mas essa garantia não pode ser absoluta. Ela não pode servir de escudo para que se prejudique os direitos dos outros, a pretexto de manter um privilégio disfarçado de sustento.
Ricardo Pereira de Oliveira
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