No dia 20 de novembro comemoramos a luta pela igualdade racial no Brasil. Para lembrar dos avanços e falar do futuro, vamos analisar mais a fundo um tema ainda pouco explorado e que gera muita dúvida entre os concurseiros: o procedimento de heteroidentificação para cotas em concursos públicos.
Olá pessoal! Tudo bem?
Vivemos em um dos países mais miscigenados do mundo, a mistura de cores é uma das marcas registradas do nosso Brasil. Contudo, desse fato surge o problema de classificação étnica para a promoção de ações afirmativas visando a igualdade racial.
As cotas para negros em concursos públicos existem no âmbito federal desde 2014, com o advento da lei 12.990 e, passados quase 8 anos, as dúvidas sobre elas ainda são muito frequentes. Afinal:
Essas são as perguntas que buscaremos responder. Então, sem mais delongas, vamos ao que interessa!
Diferentemente das cotas para deficientes físicos, a Constituição Federal não determinou expressamente a reserva de vagas em concursos para negros. Entretanto, na Ação Direta de Constitucionalidade ADC 41/DF, julgando a Lei Federal 12.990/2014 que instituiu reserva de vagas de 20% para negros no âmbito da União, a Suprema Corte fixou a seguinte tese:
“É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”
Ademais, a existência de reserva de vagas para candidatos negros depende de edição de lei do Estado, Distrito Federal ou do Município correspondente, conforme a jurisprudência consolidada. [1]
Assim, dentre as Unidades Federativas, 13 Estados e o Distrito Federal já instituíram cotas para candidatos negros, conforme mostra o infográfico acima.
Além disso, a maioria das Unidades Federativas simplesmente copiou os termos da Lei Federal 12.990, em alguns casos mudando apenas a porcentagem de vagas reservadas. As maiores inovações ficaram com o Estado do Rio Grande do Sul, que vinculou a porcentagem de vagas à proporção da sua população negra levantada pelo IBGE, e o Estado do Ceará, que determinou a eliminação do certame do candidato que não tiver a sua autodeclaração confirmada por procedimento de heteroidentificação.
Por fim, a Comissão Nacional de Justiça, expressando sua preocupação com o tema, determinou a reserva de 20% das vagas para candidatos negros, por meio da Resolução 203 de 2015, válida para todo o poder judiciário.
Afinal, o que é ser negro para fins de cota em concursos públicos?
A resposta está no Estatuto da Igualdade Racial, Lei Federal 12.288 de 2010:
Art. 1º Parágrafo único. Para efeito deste estatuto, considera-se:
IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;
A classificação adotada pelo IBGE divide a população com base na autopercepção da sua cor em preta, parda, branca, indígena ou amarela, sendo as duas primeiras espécies do gênero população negra.
De acordo com o pesquisador do IPEA Rafael Osório [2], são três os métodos de identificação racial: autodeclaração, heteroidentificação e identificação do genótipo.
Apenas os dois primeiros são utilizados em concursos públicos, pois analisam o fenótipo da pessoa, isso é, seus traços físicos, em busca de uma classificação de cor. Enquanto na autodeclaração o sujeito escolhe com qual cor se identifica, no procedimento de heteroidentificação um terceiro faz essa escolha.
Assim, em concursos públicos, por força do interesse público sobre os efeitos jurídicos da declaração do candidato, o método utilizado é normalmente o da autodeclaração confirmada pela heteroidentificação.
Além disso, a identificação do genótipo não é levada em conta nos certames, sendo irrelevante os parentescos que o candidato possa ter com pessoas negras.
No âmbito da União, a Portaria Normativa nº 4 regulamenta o tema:
Art. 9º A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato no concurso público.
§ 2º Não serão considerados, para os fins do caput, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais.
Primeiramente é importante ressaltarmos que a heteroidentificação é mais comum do que pensamos. Ela acontece na escolha do médico sobre o campo “cor” da certidão de nascimento e, também, quando o recenseador do IBGE decide preencher o campo “cor ou raça” com a opção mais provável para o caso.
Também vale salientar que o procedimento de heteroidentificação anterior não tem influência sobre outros que a pessoa venha a ser submetida.
Atendendo ao interesse público, a comissão de heteroidentificação delibera por maioria e na ausência do candidato. Para atender à ampla defesa, uma comissão própria aprecia recursos ao resultado preliminar.
É o que dispõe a Portaria Normativa nº 4 no âmbito da Administração Federal:
Art. 6º O procedimento de heteroidentificação será realizado por comissão criada especificamente para este fim.
§ 2º A comissão de heteroidentificação será composta por cinco membros e seus suplentes.
Art. 12. A comissão de heteroidentificação deliberará pela maioria dos seus membros, sob forma de parecer motivado.
§ 2º É vedado à comissão de heteroidentificação deliberar na presença dos candidatos.
Art. 13. Os editais preverão a existência de comissão recursal.
§ 1º A comissão recursal será composta por três integrantes distintos dos membros da comissão de heteroidentificação.
No concurso de 2021 da Polícia Federal, realizado pela banca Cebraspe, a comissão de heteroidentificação desclassificou 102 dos 511 candidatos chamados para o procedimento. [3]
Afinal, qual a consequência da reprovação no procedimento de heteroidentificação?
Primeiramente, é essencial que o candidato analise atentamente as especificidades do edital do concurso do qual vai participar.
No entanto, de uma maneira geral, podemos dividir os editais em três grupos:
Nos casos de previsão expressa de eliminação do certame independentemente de falsidade, o mais prudente para o candidato é se inscrever apenas se tiver convicção do seu fenótipo de pardo ou preto.
Nessa hipótese, mesmo que obtenha a maior nota do certame, sendo reprovado na heteroidentificação, o candidato é eliminado. Temos o edital de escrivão da PC/DF de 2019 como um exemplo de expressa previsão de eliminação do certame:
6.2.9 Será eliminado do concurso o candidato que:
a) não for considerado negro pela comissão de heteroidentificação, conforme previsto no art. 2º, parágrafo único, da Lei Federal nº 12.990/2014, e no art. 11 da Portaria Normativa nº 4/2018, ainda que tenha obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independente de alegação de boa-fé;
Ademais, tal item do edital foi impugnado, porém a banca Cebraspe não acolheu a impugnação com o seguinte argumento:
“O Edital está de acordo com o Artigo nº 11 da Portaria Normativa Nº 4, de abril de 2018, que regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, que diz “Serão eliminados do concurso público os candidatos cujas autodeclarações não forem confirmadas em procedimento de heteroidentificação, ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independentemente de alegação de boa-fé.” [4]
Assim, vemos que tal disposição expressa de exclusão do certame, independentemente de falsidade, tem se tornado mais comum em concursos federais devido ao artigo 11 da Portaria Normativa nº 4 editada em 2018.
Além disso, a Lei de Cotas editada pelo Estado do Ceará, Lei Estadual 17.432 de 2021, incorporou a previsão de eliminação independentemente de falsidade, sendo esperado que os próximos editais do Estado a contenham.
Por outro lado, nos casos de expressa reclassificação em ampla concorrência, o candidato pode se inscrever como cotista ainda que haja dúvida razoável quanto ao fenótipo.
Contudo, caso não haja como sustentar um fenótipo negro, a declaração falsa que for dolosamente feita para alterar verdade sobre fato juridicamente relevante pode configurar crime de falsidade ideológica, independentemente do que dispor o edital.
Vejamos um exemplo no edital de Auditor Fiscal da SEFAZ ES de 2021 da banca FGV:
8.4 A não aprovação na análise documental realizada no caso da condição de indígena ou o indeferimento da condição de negro, bem como o não comparecimento à entrevista no caso dos candidatos negros, acarretará a perda do direito aos quantitativos reservados aos candidatos em tais condições, passando estes a figurar apenas na lista de classificação geral.
Por fim, o caso mais comum é o da previsão de eliminação do certame em casos de falsidade, conforme dispõe a Lei Federal 12.990:
Art. 2 Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
No entanto, tal disposição, reproduzida em muitos editais, deve ser interpretada em conjunto com o artigo 3º:
Art. 3º Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.
Assim, se o candidato obtiver nota para se classificar em ampla concorrência, o procedimento de heteroidentificação se torna dispensável e a vaga reservada para negros é atribuída a outro candidato negro.
Por outro lado, se o candidato inicialmente usar sua condição de negro para usufruir das vagas reservadas e tal condição for posteriormente afastada pela heteroidentificação, sem alegação de falsidade, não se pode admitir a interpretação de que o candidato não teria direito a ser classificado em vagas de ampla concorrência, pois tal interpretação esvaziaria o conteúdo do artigo 3º citado.
Primeiramente, tenha em mente que sempre haverá um grau de discricionariedade no procedimento de heteroidentificação para cotas em concursos públicos, de tal forma que não podemos garantir que as autodeclarações serão confirmadas na heteroidentificação. Entretanto, a discricionariedade nesses procedimentos encontra limites no direito.
Assim, para que se possa fazer as melhores escolhas, o candidato deve ter conhecimento das regras do jogo, principalmente do edital do concurso, e refletir sobre suas condições pessoais. A escolha mais adequada dependerá das consequências da não confirmação da condição de negro previstas no edital e analisadas em detalhe neste artigo.
[1] | Ver, por exemplo, MS 0256150-87.2017.8.13.0000 MG: https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/492262018/mandado-de-seguranca-ms-10000170256150000-mg/inteiro-teor-492262095. |
[2] | R. Osório, “Tema para discussão nº 996,” IPEA: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf. |
[3] | https://www.cebraspe.org.br/concursos/pf_21. |
[4] | https://cdn.cebraspe.org.br/concursos/pc_df_19_escrivao/arquivos/PCDF_2019_RESPOSTAS_IMPUGNACOES.PDF. |
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