Depois de 2 anos de espera eis que finalmente tivemos a aplicação do TPS do CACD. Apreensões e expectativas de toda sorte rondavam a aplicação dessa prova – das preocupações legítimas com a segurança num contexto pandêmico ao nível da própria prova. E é sobre esse último elemento que gostaria de tratar aqui relativamente à minha área, HM e HB.
Muitos foram aqueles que reclamaram da prova de história e têm razão: a História foi um grande flagelo para os candidatos. As duas provas acentuaram as tendências anteriores e se aprofundaram cada vez mais em detalhes, por vezes, de importância nula e estéril que nem aos historiadores metódicos do século XIX agradariam. Muitos itens de História Mundial e de História do Brasil exigiram conhecimento enciclopédico decorado. Outros, traziam interpretações passíveis de questionamento. Vejamos exemplos dos dois casos:
1) Na prova tipo D, questão 59, item 4, lê-se: “Na Bélgica, a evolução do partido liberal foi acompanhada de uma intensificação do processo de laicização o que se nota com a determinação da abertura obrigatória de escolas públicas, iniciativa do gabinete de Frère-Orban firmemente combatida pelo clero católico.”
Ora, a política liberal da Bélgica no fim do século XIX marcada pelo embate de católicos ultramontanos e liberais durante o pontificado de Leão XIII e o governo de Frère-Orban não é lá um conteúdo que um candidato – e sejamos sinceros, professores – focaria sua atenção considerando a miríade de outros conteúdos do mesmo período, não é?
2) Na prova tipo D, questão 46, item 1, lê-se: “No decorrer dos primeiros anos do Governo Vargas, verificou-se forte crescimento do setor industrial brasileiro, o que pode ser explicado, entre outros fatores, pela crise internacional que permitiu a substituição da importação por ações de proteção à indústrias e a medidas cambiais.”
Aqui temos um problema muito evidente de indefinição cronológica que causa grave questão interpretativa. Quanto tempo se considera os ‘primeiros anos’ de Vargas? 1, 2, 3? Mais? O item está considerado correto pelo gabarito preliminar, mas a depender do recorte, pode muito bem ser considerado incorreto. Veja esse trecho de Boris Fausto:
“A política econômica-financeira do Estado Novo representou uma mudança de orientação relativamente aos anos 1930-1937. Nesse período, não houve uma linha clara de incentivo ao setor industrial. O governo equilibrou-se entre os diferentes interesses, inclusive agrários, sendo também bastante sensível às pressões externas. (…) A partir de novembro de 1937, o Estado embarcou em uma política de substituição de importações pela produção interna e de estabelecer uma indústria de base.” (História do Brasil, p. 369-370).
Disputa-se, assim, a ideia de diretivas claras de proteção à indústria até o Estado Novo.
Agora, um trecho do texto de Pedro Cezar Dutra Fonseca, com dados do crescimento industrial no período:
“Como desconsiderar o crescimento médio da indústria de transformação de 11,2% anuais entre 1933-39, enquanto a agricultura cresceu pouco mais de 2% entre 1934-37, para uma taxa média da economia de 6,5% ao ano? Por outro lado, há alteração não desprezível na pauta de importação na década de 1930: os bens de consumo entre 1901 e 1907 representavam 36,9% do valor das importações e caíram para 17,6% em 1933-39, enquanto a importação de bens de capital no primeiro período representava apenas 7,1% alcançou 17,9% no
último. Registra-se, em adição, que o crescimento industrial não se restringiu aos bens de consumo não duráveis. Embora se possa ponderar que, por terem pequena participação no total do valor agregado industrial, qualquer crescimento em termos porcentuais pode tornar-se significativo, deve-se mencionar que as maiores taxas médias anuais nesse período ocorreram nos setores de papel e papelão (22,0%), metalúrgica (20,6%) e minerais não metálicos (19,9%), enquanto entre 1932-37 a produção física de ferro gusa aumentou 240%, a de aço em lingotes 123% e a de laminados 142%; no mesmo período, o consumo aparente de cimento cresceu 110% e o de cimento nacional 282%” (A Revolução de 1930 e a Economia Brasileira, p. 849-850. Acessível em: http://www.anpec.org.br/revista/vol13/vol13n3bp843_866.pdf)
Percebem como a definição do período cronológico seria fundamental para que a resposta fosse inquestionável e inequívoca?
Ainda nessa categoria poderíamos acrescentar todos os itens que, de alguma forma, partiam de definições cronológicas do Congresso de Viena. Como não há consenso, mas também não há definição oficial de bibliografia, a confusão é certa: quando a ordem sofreu seu grande choque, 1830 ou 1848? quando acabou, 1848, 1871 ou 1914? Qual o papel das unificações tardias na crise do sistema de Viena? Tudo isso são interpretações históricas e, nesse caso, discutidas (e, acredito, sem que algum dia se chegue a um consenso). Veja, por exemplo, o que nos diz Adam Watson:
“A operação do sistema na própria Europa pode ser dividida para nossos fins em três período. As três primeiras décadas, de 1815 a 1848, foram um período de paz entre as grandes potências e de repressão de revoluções sociais e políticas. O segundo período, de 1848 a 1871, foi marcado pelo nacionalismo revolucionário e por guerras de ajuste. O terceiro período, de 1871 ao fim do século, foi novamente um período de paz na Europa, com o concerto dominado em grande medida por Bismarck”. (Evolução da sociedade internacional, p. 339).
Já o livro organizado por Sombra Saraiva deixa entrever um recorte em 1871, na medida em que divide a análise do século XIX em duas partes: uma de 1815 a 1871 e outra de 1871 a 1914.
Em suma, sem bibliografia oficial, os itens desse nível interpretativo se tornam um pesadelo para os candidatos: de onde a banca tirou isso? De fulano ou sicrano? Dessa ou daquela escola de interpretação histórica? A falta de transparência sempre acabará por jogar a favor da banca contra possíveis recursos dos CACDistas.
Dessa maneira, caros e caras, considero que a prova foi um verdadeiro flagelo que desnuda um horizonte pouco alentador para a área de História. Mais e mais será requerido de vocês Erudição e, pelo jeito, mesmo algumas relativamente estéreis – afinal, o Barão do Rio Branco e Machado de Assis desenvolveram “uma admiração mútua” (Q. 51, item 2, prova tipo D)?
Se eu fosse candidato, começaria a articular um movimento em prol de uma bibliografia oficial – ainda que bastante extensa. Afinal, há precedente no próprio CACD e em outros concursos. Sem essa, o nível de detalhamento e de cobrança desses pormenores vai se tornar mais comum, ainda mais com a perda da tradição da banca CESPE/CEBRASPE.
***
Dito tudo isso, quais são os possíveis recursos? Há um evidente e um outro possível de ser argumentado, ambos em HB.
Primeiro ao evidente. Na Q. 54, item 3, da prova tipo D, lê-se: “Uma das mudanças trazidas pela Constituição de 1988 foi a redução do mandato presidencial para quatro anos, com eleição em dois turnos e extensão do voto aos analfabetos.”
O gabarito está como Correto. Contudo, ao lermos o texto original do art. 82 da constituição, está escrito: “Art. 82. O mandato do Presidente da República é de cinco anos, vedada a reeleição para o período subseqüente, e terá início em 1º de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição.” O mandato de 5 anos diminuiu para quatro anos com a emenda de Revisão Constitucional n. 5 de 1994 e entrou em vigor em 1995. Logo, o gabarito entra em choque direto com o texto original da constituição de modo que o gabarito deve ser considerado Errado.
Agora ao questionável. Na Q. 49, item 4, prova tipo D, lê-se: “Se, pelo lado das contas públicas, o conflito teve efeito negativo na economia brasileira, levando ao aumento de impostos e a emissões de título, pelo lado da produção, teve efeitos setoriais positivos, por meio da substituição de importações e do estímulo à demanda interna de matérias-primas antes voltadas à exportação.”
O gabarito é considerado Correto. Contudo, texto recente publicado na coleção O Brasil Republicano, vol I, de autoria de Jose Arias Neto afirma em sua página 207-208, pode levar a alteração do item para Errado:
“É consagrada na historiografia brasileira a visão de que nos anos da guerra, de 1914 a 1918, graças ao fechamento do mercado internacional, ter-se-ia consolidada uma indústria voltada para a substituição de importações. Essa afirmação é, porém, duvidosa, pois, se o mercado estava fechado às importações de produtos manufaturados, as importações de bens de capital, que poderiam permitir a instalação de novas unidades também sofriam a mesma restrição. Os dados de importação de maquinaria da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da Alemanha e da França
demonstram que no período de 1908 a 1913 o total das compras junto àqueles países foi de 9,5 milhões de libras aproximadamente, perfazendo uma média de 1,9 milhão de libras ao ano. Nos anos da guerra, isto é, de 1914 a 1918, o total das importações foi de apenas 2,7 milhões de libras, o que representa uma média de 550 mil libras ao ano. Em outras palavras, os índices de importação de maquinaria caíram três vezes e meia em relação ao período anterior. Finalmente, no período que vai de 1919 a 1930, o total de importações de máquinas foi de 22,6 milhões de libras, o que representa uma média anual de 1,8 milhão de libras, ou seja, depois da guerra a média de importação retomou os níveis de 1908-1913. (…) Com essas variantes em mente, pode-se supor, portanto, que durante a guerra houve uma redução na atividade industrial, o que permite, ao menos, relativizar a ideia de que teria ocorrido uma substituição de importações. (…) Por outro lado, se os valores de importação de maquinaria indicam uma redução no ritmo de crescimento durante a guerra, os dados de produção corroboram essa suposição.”
Esses são os dois recursos que eu e Diogo consideramos mais “certos” de serem revisados. Os demais, por envolverem interpretação mais que fatos, podem facilmente ser defletidos (ainda que o item sobre Vargas anteriormente exposto possa também ser uma boa aposta de recurso).
Estamos na torcida por todos vocês! Forte abraço!
Prof. Pedro Soares e Prof. Diogo D’angelo
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