Este texto possui a finalidade de explicar as autarquias e como a doutrina foi remodelando suas definições, com o passar das décadas.
Para iniciar, é preciso entender como funciona a administração pública. Quando o estado se organiza para atender a sua população por meio de seus programas de governo, existem serviços prestados diretamente pela administração pública. Por exemplo, a prestação de serviço de segurança pública é realizada pelos Estados, por meio de um órgão – que nesse caso é a Polícia Militar, encarregado do policiamento ostensivo e patrulhamento (técnicas utilizadas para garantir a segurança das pessoas e do patrimônio).
Existem outras atividades típicas do estado, como a atuação de tribunais, ou mesmo a atividade legislativa, exercida nos Estados pelas assembleias legislativas, ou pelos municípios, no âmbito das câmaras municipais. O que é relevante até aqui é que as atividades diretamente realizadas pela administração pública são feitas por órgãos, pois eles são criados por desconcentração de poderes e atribuições do ente estatal. Órgãos são centros de competências, que realizam atividade em nome do estado. Tais órgãos não possuem personalidade jurídica, sendo suas ações atribuíveis ao ente estatal. Em decorrência da modernização da administração pública, houve a necessidade de conceder mais autonomia e especialização para as ações do ente estatal. Esse conceito mudou a ideia de desconcentrar a administração para também descentralizar a administração. E descentralizar, neste raciocínio, significa dar tanto poder que se cria uma nova pessoa jurídica.
Essa necessidade de autonomia e especialização resultou no Decreto-lei 200/1967, que trouxe a definição de administração direta e indireta. O Decreto-lei n. 200/1967 desta maneira estabelece, no art. 3.o: “Respeitada a competência constitucional do Poder Legislativo estabelecida no artigo 46, inciso II e IV, da Constituição, o Poder Executivo regulará a estruturação, as atribuições e o funcionamento dos órgãos da Administração Federal.
Art. 4° A Administração Federal compreende:
I – A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios.
II – A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria:
a) Autarquias;
b) Emprêsas Públicas;
c) Sociedades de Economia Mista.
d) fundações públicas.
§ 1° As entidades compreendidas na Administração Indireta consideram-se vinculadas ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade.
Parágrafo único. As entidades compreendidas na Administração Indireta vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade.”
Nota-se que a partir deste diploma legal existem duas administrações: a direta, vinculada, hierarquizada e subordinada ao chefe do poder executivo, que comanda a máquina pública em nível federal. Esta administração possui, subordinada a ela, ministérios e órgãos. Por exemplo, hoje, em nível federal, a Receita Federal do Brasil é um órgão, que está subordinado ao Ministério da Economia, por sua vez subordinado ao chefe do poder executivo, o Presidente da República. A União é a pessoa jurídica a que todas essas divisões se reportam, sendo a pessoa jurídica da União que responderá juridicamente por essas ações.
Em contrapartida, existe também a administração indireta, que vai resultar da descentralização administrativa – descentralização esta que cria uma nova pessoa jurídica, distinta da administração direta, mas vinculada a ela. Mas, se foi criada uma pessoa jurídica, não foi para ter autonomia e especialização? Vai ficar vinculada como desse jeito? A vinculação, nesse caso, é finalística. O que se vai observar é se a entidade da administração indireta cumpre as finalidades para as quais a entidade foi criada.
As autarquias possuem suas definições explicitadas pelo artigo 5.o do Decreto-lei n. 200/1967: “Para os fins desta lei, considera-se:
I – Autarquia – o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.”
Explicando a definição: autarquia é um serviço autônomo, criado por lei (é, somente pode ser criada autarquia por lei específica), com personalidade jurídica (ou seja, ela responde por seus atos, não imputando à administração direta suas ações, sejam elas corretas ou erradas), patrimônio e receita próprias – para garantir aquela autonomia, e também por conta da natureza específica de suas atividades (uma autarquia não tem que pedir permissão para realizar suas funções – a lei que a cria determina e estabelece quais são as suas funções), para realizar atividades típicas da Administração Pública (atividades típicas de estado – por definição, não pode ser atividade econômica), que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.
O conceito central da descentralização parte do pressuposto que muitas vezes a administração direta possui uma estrutura bastante burocratizada. Isso significa que, de maneira frequente, a atuação da administração direta possui limitações: uma dependência de autorizações e deliberações que atrasam ações que precisam ser tomadas e implementadas rapidamente, sendo que tais autorizações precisam ser dadas por agentes políticos – que geralmente não possuem a especialização necessária para entender a ação a ser tomada. Na época, a administração direta já era vista como lenta e defasada.
Há também outro problema: na administração direta, existem dois agentes públicos que interagem: agentes políticos e burocratas (servidores públicos). É claro que existem determinados choques, pois geralmente os políticos chefiam os burocratas – entretanto, existem situações em que o burocrata, para melhor realizar seu trabalho, precisa estar livre de influências que possam ameaçar sua posição profissional. Por esses motivos, é necessária a autonomia administrativa e financeira de uma autarquia.
Em decorrência de sua autonomia e especialização, as autarquias possuem prazos processuais em dobro (se uma empresa possui 30 dias para se manifestar, a autarquia possui 60 dias) e imunidade tributária recíproca de impostos (afinal, elas são extensões do estado).
As autarquias podem ser classificadas em autarquias territoriais, como na época do Decreto-lei n. 200/1967 foram as autarquias dos Territórios de Amapá, Roraima, e a ilha de Fernando de Noronha. Essas autarquias eram unidades administrativas da União, e foram extintas na Constituição Federal de 1988 (CF/88). Amapá e Roraima se transformaram em estados, e Fernando de Noronha foi integrado ao estado de Pernambuco.
A outra classificação de autarquias são as autarquias institucionais, que foram criadas para executar funções típicas de estado em um determinado grau de especialidade. E as autarquias institucionais podem ser divididas ainda em: autarquias assistenciais, autarquias previdenciárias, autarquias culturais, autarquias profissionais ou corporativas, autarquias de controle ou agências reguladoras, autarquias associativas e autarquias administrativas.
As autarquias assistenciais visam promover o desenvolvimento de regiões menos desenvolvidas ou a categorias sociais específicas. São exemplos a Superintendência do Desenvolvimento da Região Nordeste (SUDENE) e a Superintendência do Desenvolvimento da Região Norte (SUDAM).
As autarquias previdenciárias existem para gerir a previdência social oficial, como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). As autarquias culturais possuem funções na área de educação e ensino, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)e a Universidade Estadual de São Paulo (USP).
As autarquias profissionais ou corporativas são conselhos profissionais que fiscalizam o exercício profissional em seus setores de especialização, como o Conselho Regional de Medicina (CRM), Conselho Federal de Contabilidade (CFC), e Conselho Regional de Economia (CORECON).
Por sua vez, as autarquias administrativas compõem uma categoria residual, que não se enquadra em nenhuma das anteriores, mas que possuem funções administrativas e de fiscalização, como o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade (INMETRO) e o Banco Central (BACEN).
Muito bem, mas e as autarquias de controle e associativas? As autarquias de controle se subdividem entre as que possuem poder de polícia, e as agências reguladoras, que passaram a regular serviços que foram privatizados. Exemplos do primeiro tipo foram agências como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Pública Suplementar (ANS). As agências reguladoras e autarquias associativas serão vistas adiante, depois da reforma gerencial.
A concepção das autarquias se deu em função de uma visão de que elas deveriam ser mais especializadas e autônomas para serem mais ágeis que a administração direta, inclusive livre de amarras como a exigência de concursos públicos. Isso gerou problemas como nepotismo nas suas contratações, bem como o crescimento desordenado da administração indireta, como se verá a seguir.
Observando que as autarquias possuíam uma autonomia bem maior do que os entes e órgãos da administração direta, o constituinte originário buscou reduzir as possibilidades de crescimento desordenado e nepotismo por meio de controles mais rígidos, impondo aos entes da administração indireta (especialmente para as autarquias e fundações públicas) a rigidez administrativa que já existia para a administração direta.
Esse movimento, na promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88) ficou conhecido como o retrocesso burocrático, pois subordinou as autarquias aos controles burocráticos típicos da administração direta. O crescimento desordenado e o nepotismo foram controlados – mas ao custo indesejado de tornar as autarquias lentas e com um cipoal de processos, o que as deixou com os mesmos problemas que a administração direta.
Na década de 90, começava a surgir no Brasil um conceito de estado que não poderia ser mais o único condutor de políticas públicas, mas que deveria trabalhar em cooperação com agentes privados, focalizando mais sua atuação em fomento, regulação e controle. É criado o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo é realizar uma reforma do aparelho do estado brasileiro, bem como uma reforma do conceito de serviço público. Nessa ideia central ocorreram também privatizações de serviços públicos, que precisavam ser regulados, e não mais geridos diretamente.
Esta concepção norteou uma reforma gerencial, que, entre outras coisas, previa uma mudança de foco na administração pública, dos processos (muitas vezes elaborados com muitos procedimentos visando um maior controle, mas que tornavam a administração rígida e lenta) para os resultados (buscando não mais fazer e procedimentalizar tudo, considerando a multiplicidade de entidades privadas). A partir desse ponto se percebe o estado se distanciando da prestação direta dos serviços públicos – virando o foco para as atividades de fomento, regulação e controle.
Foram criados mecanismos para assegurar que essa transição fosse realizada de forma a manter o foco nos resultados, sendo que dois deles impactam diretamente as autarquias. O primeiro é a criação do conceito de agência reguladora, e outro, a introdução do conceito de agência executiva.
As autarquias tinham status de pessoa jurídica de direito público, instituídas por lei, para executar atividades típicas da administração pública cujas características exigissem gestão administrativa e financeira descentralizada. Foram criadas em um momento anterior, quando o estado centralizava a prestação de tais serviços.
Entretanto, o estado brasileiro vinha de um colapso resultante do agigantamento da administração pública, que exigia, entre outras coisas, uma reforma da administração pública, privatizando determinados setores, ou fazendo concessões para a iniciativa privada.
A partir dessa ideia, era necessário fiscalizar, regular e resolver problemas entre as empresas privadas e os agora clientes (a população em geral). Para essa finalidade foram previstas, em Emendas Constitucionais, agências reguladoras, para fiscalizar e regular setores como telecomunicações, como a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), bem como o setor de petróleo, com a Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Agências reguladoras são autarquias em regime especial – possuem algumas características mais específicas. Um exemplo disso é que seus dirigentes possuem mandato fixo, pois não podem ser destituídos pelo chefe do poder executivo que os indicou para a posição. E seu mandato não coincide com o do chefe do poder executivo – indicando uma independência do dirigente de seu agente político de indicação. Inclusive existe a previsão constitucional da aprovação dos senadores aos indicados a presidente e diretores do Banco Central (BACEN).
A agência executiva, por sua vez, não é uma autarquia em regime especial, mas sim, uma classificação doutrinária. Ocorre que a reforma gerencial dos anos 90 previa um termo denominado de contrato de gestão, um documento assinado entre a autarquia e o ministério ou secretaria à qual ela está vinculada, no qual são pactuados objetivos, metas e indicadores, para uma melhor gestão. Em contrapartida, a autarquia se torna uma agência executiva: ela possui maior autonomia administrativa e financeira, podendo inclusive desfrutar de um limite dobrado para dispensa de licitações. Funciona assim: se a administração pública direta e indireta possuir um limite de dispensa de R$ 1 milhão de reais, a agência executiva possuirá um limite de R$ 2 milhões. Um exemplo de autarquia como agência executiva é o INMETRO.
Por último, neste contexto mais dissociado de uma prestação direta de serviços do estado, foram concebidas as autarquias associativas, ou consórcios públicos, pela lei n. 11107/2005. Tais entidades podem ser compostas por municípios de um estado, municípios e seu próprio estado, e também como a extinta Autoridade Pública Olímpica (APO), criada pela lei n. 12396/2011, que atualmente foi transformada em Autoridade da Governança do Legado Olímpico (AGLO), vinculada à Secretaria Especial do Esporte.
Neste texto foi possível analisar aspectos da organização do estado, em sua concepção mais direta e intervencionista, bem como, com o passar do tempo, a burocratização pode tornar muito difícil a operacionalização das ações e atividades do poder público.
A primeira mudança do serviço público, administrativamente falando, se dá com o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1937, um órgão que traz a reforma burocrática para o interior da máquina pública. A máquina pública, por sua vez, aumenta em tamanho, sendo necessário reformular a estrutura.
A segunda reforma se dá com o Decreto-lei n. 200/1967, que institui os dois tipos de administração existentes: a direta e indireta. E nesta organização administrativa institui a figura da autarquia como serviço especializado, que necessita de autonomia administrativa e financeira.
Em um terceiro momento, com a crise da administração pública, é necessário mudar o conceito de autarquia, levando-a para um papel mais estratégico para o administrador público, em que o ente público não mais vai executar os serviços públicos diretamente, exceto as atividades de fomento, regulação e controle. Neste momento, o estado deve pensar o ambiente com vários atores, que podem executar diretamente determinados serviços.
A atuação destas instituições passa a ser a estabelecer regras e diretrizes para a prestação de serviços públicos, bem como a vigilância para conter e punir abusos do poder econômico que possam ser cometidos por esses atores. Assim, é possível notar as transformações que o conceito de autarquia sofreu ao longo dos quase 60 anos em que o termo vem sendo utilizado.
Ricardo Pereira de Oliveira
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Até mais!!
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