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As pessoas com deficiência e o consentimento: a Lei 13.718/2018 e o exercício dos direitos sexuais.

O crime de estupro de vulnerável veda a prática sexual com aqueles que, por presunção legal, não podem com ela consentir, como é o caso dos menores de 14 anos de idade. Está previsto no artigo 217-A do Código penal, acrescentado pela Lei n. 12.015/2009.

Sua ação típica consiste em ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos de idade. Neste tipo penal, não se pune a conduta de constranger, nem se exige violência ou grave ameaça, no que se diferencia do estupro do artigo 213 do Código. A conduta punida é a prática sexual por si só, já que a pessoa com qual ela se realiza não tem capacidade para consentir com o ato, por presunção da lei.

O parágrafo primeiro do artigo 217-A do Código Penal prevê incorrer na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com vítimas maiores de 14 anos. São situações de vulnerabilidade que tornam o tipo penal mais abrangente.

Pune-se, com tal previsão, a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.            

No caso de deficiência mental, a leitura do texto normativo nos leva à conclusão de que só haveria crime se referida condição retirasse da vítima o discernimento necessário a prática do ato, o que pode ou não ocorrer, conforme a deficiência específica e o quadro neuropsicológico do agente.

O critério adotado, assim, seria o biopsicológico, o mesmo usado para aferição da imputabilidade do sujeito ativo do delito: para que alguém não pudesse consentir com a prática sexual, seriam necessários tanto a doença mental ou desenvolvimento mental retardado quanto a falta de discernimento decorrente.

A questão se tornou mais complexa quando da discussão sobre o cabimento ou não do consentimento de menores de 14 anos de idade para o sexo. Referido questionamento levou, como será analisado a seguir, a uma reforma legislativa que também atingiu os indivíduos com deficiência mental.

O problema surgiu quando, em lamentável postura de revitimização, passou-se a questionar se o fato de a pessoa menor de quatorze anos possuir experiência sexual, consentir com o ato (ou desejá-lo) ou mesmo ter relacionamento com o agente impediria a configuração do delito. Em outros termos, questionava-se se persistiria o crime no caso de o sujeito ativo praticar o ato libidinoso no contexto de namoro com uma moça ou um rapaz com menos de 14 anos de idade ou, até mesmo, se a moça ou o rapaz aceitassem a prática sexual ou já tivessem uma vida sexual ativa.

O STJ, sob o rito do recurso especial repetitivo, afastou tal argumento, entendendo que não se deve realizar tal análise da vítima:

“(…) 9.  Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida nos  autos da Ação Penal n. 0001476-20.2010.8.0043, em tramitação na Comarca  de  Buriti  dos  Lopes/PI,  por  considerar  que  o acórdão recorrido  contrariou  o  art. 217-A do Código Penal, assentando-se, sob  o  rito  do  Recurso Especial Repetitivo (art. 543-C do CPC), a seguinte  tese:  Para  a  caracterização  do  crime  de  estupro  de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o  agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência  sexual  anterior  ou  a  existência  de  relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime. (…)” (STJ, REsp 1480881/PI, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Terceira Seção, DJe 10/09/2015).

Reafirmando-se a configuração do delito independentemente do histórico sexual da vítima, bem como seu eventual relacionamento ou desejo, a referida Corte Superior editou o enunciado 593 da sua Súmula:

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

Até então, nada afetava o consentimento de maiores de 14 anos com algum grau de deficiência mental.

Ocorre que a Lei 13.718/2018 inseriu o parágrafo quinto ao artigo 217-A, incorporando o entendimento consolidado na jurisprudência do STJ ao Código Penal, mas indo além

§5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

O problema é que a Lei 13.718/2018 incluiu os vulneráveis por equiparação na vedação de consentimento, ao mencionar o parágrafo primeiro.

A crítica necessária com relação à modificação legislativa é a sua amplitude. A Súmula 593 do STJ estava correta: menor de 14 anos de idade não pode consentir com a prática sexual. Sem dúvidas! Ocorre que as pessoas com deficiência mental também foram incluídas na absoluta vedação de consentimento.

Pela leitura pura e simples do caput do artigo 217-A e dos seus parágrafos primeiro e quinto, pessoas com deficiência mental jamais poderiam consentir com a prática do ato sexual. Estão, então, impedidas de ter vida sexual ativa? Só podem transar com quem também possui deficiência, por serem ambos inimputáveis?

Não parece que as respostas sejam afirmativas. Isto porque o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei 13.146/2015, expressamente prevê, em seu artigo 6º, inciso II, que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer seus direitos sexuais e reprodutivos.

Apesar de representar um tema pouco discutido pela sociedade, fato é que pessoas com deficiência mental podem ter vida sexual e, inclusive, casarem-se e serem felizes, seja com outro indivíduo de igual condição ou não.

Em estudo sobre o tema, Rosana Glat e Rute Cândida de Freitas apontam que as pessoas com deficiência mental não são um grupo homogêneo, apontando que a deficiência de grau leve ou moderado se aproxima mais dos indivíduos sem deficiência mental do que daqueles que possuem uma deficiência de grau mais elevado. Além disso, citando um estudo de Arthur Correia Militão, verificam uma dificuldade de pais e professores na própria educação sexual de jovens com deficiência mental[1].

Não se pretende aqui adentrar a área psiquiátrica, psicológica ou de educação especial, mas a citação auxilia a compreender a complexidade da sexualidade de pessoas com deficiência mental, bem como a fundamentar a impossibilidade de vedação absoluta de desenvolvimento de uma faceta dos direitos da personalidade. Há diversos graus de deficiência mental, o que pode possibilitar ou não o consentimento.

Por todo o exposto, deve-se considerar que, em razão de expressa permissão legal[2], a prática sexual consentida com pessoas com deficiência não é sequer típica. Isto porque, como defendido por Eugenio Raúl Zaffaroni, a tipicidade deve ser compreendida de modo conglobante, isto é, pressupondo a antinormatividade. Se alguma norma do ordenamento jurídico impõe um dever ou fomenta a conduta, ela deve ser considerada fora da moldura da tipicidade, ainda que seja formal e aparentemente típica[3].

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) garante o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais às pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Ainda que não haja um fomento de vida sexual, há a previsão expressa do direito de exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. A tal direito corresponde um dever, o de não ameaçá-lo ou violá-lo.

Nesta leitura, não há como se conceber que o ato sexual consentido entre dois adultos, mesmo que um deles possua deficiência mental, seja invariavelmente uma infração penal. Não pode o Estado garantir o exercício dos direitos sexuais de referidas pessoas e, ao mesmo tempo, criminalizar quem com elas se relacione. Nem se pode interpretar que só seria possível o ato sexual com outra pessoa de igual condição, o que levaria a uma intolerável categorização de pessoas em níveis diversos, ferindo a igualdade. Isto porque não se pode tolerar um tratamento diferenciado sem que haja um fator de discrímen que guarde correlação lógica com a diferenciação realizada[4].

Claro, cada caso deve ser analisado individualmente, para se verificar adequadamente a respectiva capacidade de consentir. O que não se pode admitir é uma vedação total de relações sexuais com quem apresenta deficiência mental, como se fossem seres humanos sem autonomia e que dependessem de uma proteção total e asfixiante de um Direito Penal paternalista. Conclusão em sentido contrário só os afastaria de um inegável aspecto da vida humana, ceifando-os de uma desejada — e ainda hoje distante — integração social.

[1] GLAT, Rosana; FREITAS, Rute Cândida. Sexualidade e deficiência mental: pesquisando, refletindo e debatendo sobre o tema. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007; p. 37.

[2] Art. 6º, II, da Lei 13.146, de 6 de julho de 2015.

[3] ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro segundo volume: teoria do delito: introdução história e metodológica, ação e tipicidade. Rio de Janeiro: Revan, 2010. 2ª edição, outubro de 2010, 3ª reimpressão, julho de 2018.

[4] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014.

Michael Procopio Avelar

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  • No caso, minha filha é casada faz 18 anos. Depois do segundo filho, ela teve um surto e queria se matar. Agora, está em um delírio dizendo que ama o vizinho viciado em drogas. Se ela ter relações sexuais com esse vizinho, a minha família poderá processá-lo, uma vez que ela já sabe da situação dela.

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