O objetivo deste artigo é explicar como se realiza a aplicação das normas de direito tributário e como a doutrina e jurisprudência vêm adaptando estes conceitos no Brasil. As normas gerais de direito tributário brasileiro são definidas pela lei n. 5.172/1966 – o Código Tributário Nacional (CTN) e também pela Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Em texto anterior, sobre vigência, foi possível compreender que, diferentemente do direito em geral, em direito tributário a vigência é distinta de eficácia. No que se refere à aplicação, o assunto é saber como a lei rege essas relações, uma vez integrada ao mundo jurídico.
Somente para lembrar: as leis em direito tributário, como as normas jurídicas em geral, possuem um ciclo sequencial de fases. Num primeiro momento, não existe ainda a lei, há um projeto de lei que será objeto de discussões pelo poder legislativo. Depois que o projeto de lei é discutido, e sofre emendas, incluindo, excluindo, ou mesmo retificando a redação original, ele vai para votação da respectiva casa legislativa. Sendo aprovada a lei, como ordinária (por maioria simples), ou complementar (por maioria absoluta).
Depois da votação, sendo a lei aprovada, ela é promulgada (passa a existir no mundo jurídico) e em seguida publicada (tornada conhecida por todos), quando pode passar a produzir efeitos, respeitado, entre outros princípios, o princípio da anterioridade tributária. De forma lógica, ela também, em regra, não pode atingir fatos anteriores a ela, respeitando o princípio da irretroatividade tributária. O processo através do qual a lei fará isso, o como, é que compreende a aplicação da lei tributária. E neste processo tanto a CF/88 como o CTN auxiliam as autoridades administrativas, o judiciário e os contribuintes, no sentido de dar contornos sobre como a aplicação é feita.
A aplicação das normas tributárias é o processo da execução das leis tributárias. De acordo com o CTN, em seu artigo 105: “A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.”
A primeira parte da disposição sobre a aplicação se refere ao fato gerador futuro, aquele que, logicamente, somente poderá acontecer depois de válida a lei tributária – encerrando o caráter prospectivo da lei tributária.
Ao tempo da publicação do CTN, esta norma foi elaborada de forma a não prejudicar o princípio da irretroatividade da lei, que não pode produzir efeitos sobre situações anteriores a ela – previsto na CF/88. Contudo, essa irretroatividade da lei não é absoluta, pois há circunstâncias que possibilitam a aplicação retroativa da norma tributária.
A segunda parte do enunciado se refere ao fato jurídico pendente, o fato gerador que começou a acontecer, mas que ainda não está completo. Mas como é possível que um fato gerador se inicie, mas que não se complete?
Bem, para explicar essa expressão, a doutrina admite a existência de três tipos de fato gerador: os fatos geradores instantâneos, os fatos geradores continuados ou periódicos e os fatos geradores complexivos.
O fato gerador instantâneo é aquele que ocorre em um momento ou ato simples – como uma doação, fato gerador sobre o qual incide o ITCMD, ou mesmo uma transação imobiliária – fato gerador do ITBI. Fato gerador instantâneo não tem hora nem dia para acontecer, simplesmente acontece a qualquer momento.
O fato gerador continuado ou periódico ocorre sempre no mesmo período de tempo, sendo cíclico – como o fato gerador de alguns impostos sobre propriedade, como o IPTU, ou mesmo o IPVA, que em ambos os casos vêm a ocorrer no dia 1.o de janeiro de todos os anos.
O fato gerador complexivo é aquele que envolve várias ocorrências que constroem o fato gerador, não ocorrendo todas de uma vez – situação, por exemplo, que envolve o Imposto de Renda para as Pessoas Físicas (IRPF). O fato gerador do IR das pessoas físicas doutrinariamente possui seu início no primeiro dia de janeiro e se estende até o último dia do ano, o período em que se considera completo, para a apuração da aquisição de renda ou proventos de seus contribuintes.
Desta forma, no entendimento de boa parte da doutrina, a lei tributária é predominantemente prospectiva, aplicando-se aos fatos geradores futuros, bem como aos fatos jurídicos pendentes – aqueles que tenham se iniciado, mas que ainda não estejam completos, como ocorre com o IRPF.
Entretanto, em um imposto como o IRPF, isso pode trazer inconvenientes. Como o imposto possui um fato gerador relativamente de longa duração, as ocorrências que justificaram o recolhimento do imposto em um determinado valor em meses como janeiro, fevereiro e março do podem ser mudadas por uma lei promulgada em até novembro do mesmo ano.
Tal circunstância poderia possibilitar uma incidência da nova lei sobre um fato gerador anterior a ela – violando o princípio da irretroatividade.
E eis aqui um problema em que a doutrina se divide. Uma parte da doutrina reconhece esta expressão “fato gerador pendente” como algo cujo início já ocorreu, mas que está suspenso, não terminou de acontecer, portanto não é um fato gerador constituído – e desta forma mudanças em lei ocorridas em um período posterior, com previsão neste artigo 105 do CTN teriam o condão de afetar esses fatos geradores ainda não concluídos, em uma retroatividade imprópria.
A outra parte da doutrina entende que, embora a expressão literal do CTN seja essa, que o fato gerador pendente não existe. Estes estudiosos entendem que ou o fato gerador acontece, ou não acontece – e desta forma não existe o fato gerador pendente. O que existe é o negócio jurídico sob condição, que pode ser suspensiva ou resolutiva ou resolutória.
As duas teses possuem pontos importantes. Em que pese o Supremo Tribunal Federal (STF), em sua jurisprudência, ter aprovado a Súmula STF 584: “Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.” – o STF jamais admitiu a retroatividade imprópria da lei. E depois de alguns anos em vigor, o excelso tribunal parece ter mudado seu entendimento sobre o tema (refutando, então, a tese do “fato jurídico pendente”) e cancelou a súmula 584-STF.
Apesar de lei e normas tributárias em geral serem prospectivas, em regra, devendo ser aplicadas a fatos geradores futuros, existem casos em é possível a aplicação retroativa da lei tributária. Conforme preceitua o art. 106 do CTN: “A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados; (…)
Dessa forma, verifica-se a aplicação da lei tributária de forma retroativa nas seguintes situações: quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidades e em situações em que se trate de atos não definitivamente julgados.
A primeira dessas hipóteses se refere à lei que seja expressamente interpretativa. O que vem a ser uma lei “expressamente interpretativa”? O que ocorre, no mundo jurídico, é que por muitas vezes as leis não delimitam conclusivamente ou adequadamente seus dispositivos, deixando de tratar alguns pontos que podem se tornar lacunas, pontos obscuros ou mesmo imprecisos.
Nesse ponto, uma lei que seja posterior, mas que se destine a aclarar aspectos de uma lei anterior que não eram claros – claramente no sentido de esclarecer, e não em inovar, possui sim um caráter de lei expressamente interpretativa – pois possui natureza declaratória e reprodutiva de direitos assegurados na norma anterior, mas excluída a aplicação de penalidades em infração aos dispositivos interpretados. Se uma lei posterior possui estas características, ela pode, sim, ser aplicada a fatos anteriores a ela.
Afinal de contas, esta lei posterior possui natureza predominantemente interpretativa, destinando-se a propiciar uma melhor interpretação da lei anterior, sem revogá-la ou modificá-la, mas acima de tudo, buscando complementá-la, no sentido de torná-la mais efetiva. Ou seja, trata-se de uma situação em que uma lei posterior não inova a lei anterior, e não poderão ser aplicadas punições de forma retroativa, já que esta lei posterior possui um caráter mais esclarecedor, elucidativo.
A segunda hipótese trata do ato definitivamente não julgado, que é o ato que ainda não possui uma decisão com caráter de definitividade. Diz também o art. 106 do CTN: “A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: (…)
II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”
Quando há o ato não definitivamente julgado e surge uma nova lei, estabelecendo que a infração não definitivamente julgada deixou de ser infração – opera-se a retroatividade benéfica em favor do contribuinte, pois aquele ato não mais é contra a lei.
Quando surge uma nova lei estabelecendo que determinado ato não é mais contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, ela também pode ser aplicada retroativamente, mas neste ponto há requisitos: que o ato em si não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento do tributo. Ora, neste dispositivo o que se busca é não permitir que o contribuinte se beneficie de sua torpeza, agindo contra a boa-fé das relações.
A terceira hipótese, quanto aos atos definitivamente não julgados é a hipótese de penalidade mais brandas poderem ser aplicadas retroativamente, pois, se o ato não está definitivamente julgado, a retroatividade é benéfica ao contribuinte. Lembrando que a penalidade anterior só pode estar não definitivamente julgada se estiver ainda sendo discutida administrativamente ou judicialmente. Por exemplo, se o contribuinte pagou uma multa de 50% do tributo, e sobrevier lei reduzindo esta multa para 30%, não terá o benefício o contribuinte que já pagou esta multa, pois aquiesceu (concordou) com ela.
Neste artigo foi abordada e explicada a figura da aplicação da lei tributária, que equivale à execução da lei no mundo dos fatos. A aplicação é um terceiro componente que somente pode ser verificado uma vez que a lei tributária esteja em plena vigência, e que também seja eficaz – dois termos que no direito tributário nem sempre andam juntos.
A aplicação da lei tributária deve atingir os fatos geradores posteriores a ela, em regra, pois a lei tributária deve ter sempre ser prospectiva, dessa forma preservando as relações jurídicas consolidadas antes de entrar em vigor, atendendo ao princípio da irretroatividade da lei, consagrado, entre outros diplomas legais, na Constituição Federal de 1988.
Apesar de ser em regra prospectiva, existem situações nas quais será possível a aplicação retroativa da lei – mas ressaltando que são situações em que a lei tributária não viole o princípio da irretroatividade, bem como não ameace a segurança jurídica.
Tais situações excepcionais envolvem a aplicação de leis expressamente interpretativas, que são leis que não inovam, mas buscam, sim, complementar o conteúdo de leis previamente existentes que não foram claras ou que possuam imprecisões que tornem sua aplicação defeituosa ou incompleta – sempre com a ressalva de que seja excluída a aplicação de penalidades a dispositivos descumpridos na lei nova, pois o objetivo dessas leis é auxiliar a interpretação, e não punir. Outras situações são enquadradas nos atos não definitivamente julgados, quando surge nova lei extinguindo a infração contida na lei anterior, quando deixe de defini-la como infração, ou mesmo quando determinado ato, que era previsto na lei anterior, deixe de ser contrário a qualquer exigência – aqui, com a ressalva de não tenha sido fraudulento e que não tenha implicado em falta de pagamento do tributo. Aqui é evidente a intenção do legislador de conceder o benefício da retroatividade da lei mais benéfica – mas também não beneficiar o contribuinte em sua torpeza, se ele tiver agido com dolo, simulação ou má-fé.
Ricardo Pereira de Oliveira
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Até mais!!
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