Uma das grandes inovações do Pacote Anticrime (pelo menos no que se refere a texto de lei), foi a introdução do acordo de não persecução penal no bojo do Código de Processo Penal. É verdade que já tínhamos a Resolução 181, de 07/08/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que inicialmente regulamentou o instituto; todavia, muitos eram os questionamentos quanto à validade/constitucionalidade de suas disposições, à falta de amparo legal.
Não vamos aqui tratar da sua definição, natureza jurídica, requisitos, condições etc. O tema é vasto. A ideia é concentrar esforços em questões assim delineadas: até aonde pode ir o juiz no ‘controle’ do ANPP? Qual o papel do magistrado diante desse acordo entre o MP e o investigado?
Não há dúvida de que o juiz não deve participar das tratativas que envolvem o ajuste. Este é um negócio jurídico que envolve o investigado e o MP, em fase pré-processual. A lei não exige presença e até implicitamente preconiza, em respeito ao sistema acusatório (imparcialidade), que o juiz fique ausente das negociações até que seja finalizado esse ajuste. Observe-se o disposto no § 3º do art. 28-A do CPP:
§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.
Por outro lado, estabelece a necessidade de uma audiência com a específica finalidade de homologação, em que o a magistrado deve verificar sobre a legalidade e a voluntariedade (consentimento informado) do acordo, inclusive ouvindo o investigado na presença do seu advogado.
§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.
A decisão do juiz (ele que não é parte no negócio jurídico, mas sim terceiro desinteressado) que homologa o ANPP não é e não equivale a uma sentença condenatória. É “mero ato homologatório, de natureza integrativa do negócio jurídico, sem força de coisa julgada material, e que tem a função de garantia da legalidade e da legitimidade da avença, permitindo que ela passe a surtir seus efeitos jurídicos”, passe a ter eficácia.
Rodrigo Cabral, de modo muito didático, relaciona os efeitos da homologação do ANPP:
Ok. Mas quais os limites de atuação do juiz quanto ao ANPP. Até aonde vai o controle jurisdicional? Algumas normas (dentro do art. 28-A do CPP) antes das respostas e comentários:
§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.
§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.
§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.
Esse tema deverá gerar bastante controvérsia na doutrina e jurisprudência. É evidente que o juiz pode avaliar a voluntariedade e a legalidade do ANPP, isso está expresso na lei. Não se discute, portanto, que o magistrado pode avaliar sobre a presença de requisitos legais e causas impeditivas. Mas a questão mais delicada é averiguar se o juiz pode avaliar as condições impostas ou mesmo o conteúdo delas.
Pessoalmente pensamos que SIM. É isso que está no § 5º do art. 28-A do CPP. Quando se avalia ‘adequação’, ‘suficiência’ e ‘abusividade’ (são os termos empregados), convenhamos, não há como escapar de uma análise de conteúdo das condições dispostas no acordo. Ora, só se pode avaliar se uma cláusula qualquer é ‘abusiva’ (pense num contrato comum), na medida em que se averigua o seu exato conteúdo, não só a extensão. O mesmo se diga em relação à ‘adequação’, relacionada à proporcionalidade da condição.
Por outro ângulo: a lei exige ‘suficiência’ para a realização do ANPP; o termo está expresso no caput do art. 28-A. A avaliação inicial e abrangente, para efeito de proposta, é feita pelo Ministério Público. Na sequência a mesma lei, no que se refere às condições, legitima o juiz a fiscalizar eventual ‘insuficiência’. Podemos até não concordar com essa opção do legislador, mas, s.m.j., ela está clara na lei.
Na medida em que a lei prevê, dentre outras, homologação, voluntariedade e fiscalização da legalidade, estabelece-se “a marca publicista do acordo de não persecução, realçando que os interesses em jogo não são meramente privados e têm transcendência pública”. Em outros termos, “a função do juiz na apreciação do acordo de não persecução penal é de garantia dos direitos do investigado e da legalidade da avença”, com cautela, para que não assuma uma posição de protagonismo, vulnerando sua imparcialidade (CABRAL, 2020). Usamos premissas do próprio autor para justificar o nosso ponto de vista.
Rodrigo Cabral (que é Promotor de Justiça) tem outra leitura[1]. Para ele, o juiz jamais poderá decidir sobre a conveniência na formatação das cláusulas obrigacionais do acordo, inclusive no que diz respeito ao quantum de prestação de serviços e de prestação pecuniária, desde que estejam dentro dos limites estabelecidos em lei. Defende que essa avaliação político-criminal cabe exclusivamente ao MP e que o próprio “juízo de adequação, a que se refere aludido dispositivo, deve limitar-se à verificação se o acordo transbordou ou não, em extensão, os limites estabelecidos em lei para o ANPP” (CABRAL, 2020).
No mesmo sentido caminha o Enunciado 24 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais/GNCCRIM, órgão do Ministério Público:
A homologação do acordo de não persecução penal, a ser realizada pelo juiz competente, é ato judicial de natureza declaratória, cujo conteúdo analisará apenas a voluntariedade e a legalidade da medida, não cabendo ao magistrado proceder a um juízo quanto ao mérito/conteúdo do acordo, sob pena de afronta ao princípio da imparcialidade, atributo que lhe é indispensável no sistema acusatório.
Renato Brasileiro, nessa questão, lembra que a Resolução 181 do CNMP, na sua redação original, não previa nenhum tipo de controle jurisdicional prévio à celebração do ANPP; na contramão de outros institutos semelhantes. Porém, isso começou a mudar com a Res. 183/2018. Afirma que “sendo o arquivamento a consequência de um acordo de não-persecução penal exitoso, tanto melhor que o juízo competente atue desde logo para verificar o cabimento da avença e de suas condições”, citando o § 5º do art. 28-A do CPP. Lembra que o juiz, nesse sentido, pode recusar o acordo. Destaca, no entanto, “que o magistrado não poderá intervir na redação final da proposta em si estabelecendo as cláusulas do acordo, o que, sem dúvidas, violaria o sistema acusatório e a própria imparcialidade objetiva do julgador” (LIMA, 2020).
Aury Lopes Jr. diz que a essa postura intervencionista do juiz (de recusar o acordo) “se justifica apenas quando houver ilegalidade nas condições ou for gravemente abusiva para o imputado” (JÚNIOR, 2020).
Em arremate: concordamos com os apontamentos de Brasileiro e Aury Lopes Jr (embora não sejam muito esclarecedores quanto às conclusões). O juiz não pode se tornar protagonista do acordo[2], não pode intervir diretamente na estipulação das condições do ANPP e sua intervenção só se justifica em circunstâncias de evidente inadequação, insuficiência ou abusividade. Todavia, como estabelece a lei, pode agir sim quando isso for constatado; não para efeito de alterar cláusula alguma ou ‘tomar as rédeas’ da negociação, mas sim para recusar homologação à proposta – exatamente como consta no § 7º do art. 28-A do CPP.
Nos termos da lei, a análise do ANPP, pelo juiz, pode se dar em duas frentes ou por razões diferenciadas:
Ou seja: tanto é verdade que se admite a avaliação do conteúdo das condições estipuladas no ANPP pelo juiz, que a lei prevê decisão diferente daquela que ele toma quando avalia apenas os requisitos legais; no primeiro caso devolve para o MP (essa é a primeira opção); no segundo caso (quando o erro é objetivo e mais grave) recusa imediatamente o acordo. Claro, isso tem lógica: condições arbitrárias se corrigem (se ‘reformulam’ para usar o termo de lei), mas acordo que a norma proíbe não pode ser feito.
Repare, por outro lado, que o § 8º do art. 28-A deve ser usado para recusa do ANPP por ilegalidade (não atendimento dos requisitos legais). Nesse caso, o caminho é o juiz primeiro recusar formalmente o acordo (decidir nesse sentido, até para viabilizar recurso) e, na sequência, devolver os autos ao MP para complementação das investigações (em caso de elementos informativos de crimes outros não considerados pelo parquet) ou para oferecimento de denúncia (quando a justa causa já estiver delimitada).
Não concordando com a recusa do juiz, existe meio de impugnação previsto em lei para o Ministério Público (ou mesmo para a defesa, que tem interesse) – o recurso em sentido estrito (art. 581, XXV, CPP). E assim as coisas vão tendo coerência e equilíbrio, permitindo-se a revisão da decisão judicial por instância superior.
Há uma saída simples prevista pela Lei 13.964/2019, constante do art. 28-A do CPP:
§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.
Resguardando o sistema acusatório e viabilizando que o próprio investigado tutele seus interesses, a lei permite que ele requeira (ao juiz) a remessa dos autos para revisão na instância competente do órgão ministerial, nos termos do art. 28 do CPP.
Ok. Mas é preciso lembrar que em fase pré-processual os investigados normalmente não têm advogado, pelo menos não costumam contratar um (custa caro). Muitas vezes são hipossuficientes e nem têm condições de tutelar seus próprios direitos (que mal conhecem). E daí, o juiz pode fazer alguma coisa?
A lei é omissa nesse ponto. Alguns, como é o caso de Rodrigo Cabral, interpretam essa omissão como ‘intencional’, impossibilitando o juiz de qualquer iniciativa; para o autor o magistrado depende sempre (na estrutura acusatória) de prévia “provocação da defesa para a aplicação do § 14, do art. 28-A do Código de Processo Penal” (CABRAL, 2020).
Outros, como Aury Lopes Jr., entendem que estamos diante de um direito público subjetivo do investigado (posição que deve ser descartada pela jurisprudência, observada a tendência), que o juiz deve tutelar mediante provocação:
Como se trata de direito público subjetivo do imputado, presentes os requisitos legais, ele tem direito aos benefícios do acordo. Não se trata, sublinhe-se, de atribuir ao juiz um papel de autor, ou mesmo de juiz-ator, característica do sistema inquisitório e incompatível com o modelo constitucional-acusatório por nós defendido. Nada disso. A sistemática é outra. O imputado postula o reconhecimento de um direito (o direito ao acordo de não persecução penal) que lhe está sendo negado pelo Ministério Público, e o juiz decide, mediante invocação. O papel do juiz aqui é o de garantidor da máxima eficácia do sistema de direitos do réu, ou seja, sua verdadeira missão constitucional. (JÚNIOR, 2020)
Eugênio Pacelli reconhece a dificuldade da questão e aponta uma solução alternativa (rejeição da denúncia) que, no nosso ponto de vista, traria tumulto processual e deixaria a ‘palavra final’ sobre o ANPP para o Judiciário (o que não é adequado), quando do julgamento de eventual recurso interposto:
Não há, todavia, uma solução clara para a situação em que o juiz entenda ser de fato o caso de se propor acordo de não persecução penal, apesar do órgão superior interno do parquet discordar. Pensamos que o melhor a se fazer seria rejeitar a denúncia, então, sob o prisma da ausência de justa causa (necessidade) para a persecução processual penal. Reconhecemos, porém, que o tema não é simples, sobretudo porque a nova legislação concede ao Ministério Público – e não ao juiz das garantias – a responsabilidade de gestão da persecução penal, ainda que sem lhe atribuir poderes discricionários para a respectiva atuação. (PACELLI, 2020)
Nós, particular e sumariamente, entendemos que, mesmo na omissão do investigado, excepcionalmente, pode SIM o juiz agir, usando da possibilidade do art. 28 do CPP (seja pela redação antiga, seja pela redação nova), para submeter a questão à instância revisora do próprio Ministério Público. Essa foi a opção da jurisprudência, para caso similar (que também não tinha previsão de atuação do juiz), em relação a outro benefício cuja legitimidade de proposta igualmente é do Ministério Público – o sursis processual:
Súmula 696 – Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.
Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito).
A jurisprudência é que certamente definirá a questão[3]. Esse entendimento que defendemos observa a tradição e se alinha aos necessários ‘freios e contrapesos’ entre poderes e instituições. O Ministério Público tem discricionaridade/poder para avaliar (inicialmente e até com preponderância) os requisitos legais de cabimento do ANPP. De sua parte, o Poder Judiciário tem a liberdade e até o dever de exercer a função atípica (excepcional e comedida) de ‘fiscal’ da legalidade na negativa de proposta do acordo, inclusive avaliando os necessários fundamentos erigidos pelo parquet.
Observada a natureza pública, de poder-dever do ANPP, de instituto de discricionariedade regrada, essa compreensão ganha consistência. Não é razoável deixar decisão tão importante como essa (cabimento ou não de ANPP), com sérias consequências, somente entre um promotor de 1º instância e um provável hipossuficiente/leigo jurídico (que são a grande maioria dos investigados), mesmo que na audiência se exija a presença de um advogado (que na maioria das vezes será ad hoc). Essa negativa do acordo tem de ganhar uma sindicabilidade maior que a expressamente prevista em lei, ao menos para permitir que o juiz possa levar a questão até a instância revisora do próprio Ministério Público.
Essa opção não violaria o sistema acusatório; afinal, a palavra final sobre o cabimento ou não do ANPP continuaria com o Ministério Público, nos termos em que sempre se concebeu a aplicação do art. 28 do CPP.
Em assim acontecendo para os casos de recusa ou não proposta de ANPP – procurando dar sistematicidade às disposições legais (isso não é fácil com relação ao Pacote Anticrime), chegaríamos à seguinte equação:
Com isso se respeitaria a independência funcional; afinal, o Judiciário não poderia obrigar o MP a agir (segunda opção acima). Por outro lado, caso o MP já tivesse agido (primeira opção), essa atuação não fugiria da inafastabilidade da prestação jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV).
Essas questões são absolutamente novas e deverão ser equacionadas pela doutrina e jurisprudência. As propostas ou soluções aqui apresentadas procuram uma interpretação sistêmica e científica, sem descuidar do sistema acusatório, da independência do Ministério Público, da tutela dos direitos e garantias individuais dos investigados (inafastabilidade da prestação jurisdicional) e dos necessários ‘freios e contrapesos’.
REFERÊNCIAS
CABRAL, R. L. F. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: JusPodivm, 2020.
CUNHA, R. S. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: JusPodivm, 2020.
JÚNIOR, A. L. Direito processual penal. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
LIMA, R. B. D. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19. Salvador: JusPodivm, 2020.
PACELLI, E. Curso de Processo Penal. 24ª. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
TÁVORA, N.; ALENCAR, R. R. Curso de direito processual penal. 15ª. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
[1] Assim como o Promotor de Justiça Sauvei Lai: “Uma vez subscrita a proposta pelas partes do negócio jurídico, cabe ao Juiz – no caso, o das garantias do art. 3-C, XVII do CPP (suspenso pela ADIn 6.299/DF) – se limitar à análise da voluntariedade do investigado (se houve vício de consentimento dos arts. 138 e seg. do Código Civil) e da legalidade do acordo (requisitos e inaplicabilidade do caput e § 2º), não podendo decerto se imiscuir no “mérito ou no conteúdo” do negócio jurídico por não ser parte negociante, sob pena de violação da imparcialidade (art. 129, I da CR/88), consoante enunciado n. 24 do CNPG. Todavia, o referido autor diz, na sequência, que “Dependendo da hipótese, o juiz pode reputar as cláusulas inadequadas (impertinentes e sem nexo com o caso concreto e a situação do investigado), insuficientes (módicos e escassos) e abusivas (excessivas), declinando os autos para o órgão do MP proponente, a fim de reformulá-las com nova dupla aceitação pela defesa (§ 5º). Fica um aviso, tal múnus judicial necessita de prudência e parcimônia, para não rasgar sua imparcialidade, intervindo como parte do negócio jurídico, algo que ele não é.” https://www.migalhas.com.br/depeso/320078/primeiras-impressoes-sobre-o-acordo-de-nao-persecucao-penal
[2] Nesse sentido Távora e Alencar, que consignam não caber ao juiz orientar as partes como devem agir para que o ANPP seja homologado (TÁVORA e ALENCAR, 2020).
[3] Existe pelo menos um precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido, noticiado pela Revista Consultor Jurídico, em 20 de maio de 2020. https://www.conjur.com.br/2020-mai-20/judiciario-nao-impor-acordo-nao-persecucao-penal-mp
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