O objetivo deste artigo é demonstrar como a imunidade religiosa, que se constitui em uma não incidência constitucionalmente qualificada, foi concebida, e de quais formas foi sendo adaptada e construída de forma incremental pela jurisprudência. Como já é amplamente sabido, o Brasil é um país laico – o que significa que não é um Estado confessional, que não há uma “religião oficial” do Estado.
A ideia de laicidade do Estado é relativamente nova na civilização ocidental, sendo vista como um dos pilares do estado moderno. Apesar de existirem experiências anteriores de impérios ou civilizações que tolerassem religiões distintas, isso sempre era considerado como uma segunda religião – em contraponto à religião oficial, do império ou civilização que exercia influência. Ou seja, nos reinos e impérios da antiguidade, era mais comum a submissão também religiosa dos reinos subjugados pelos conquistadores. Nem sempre havia tolerância.
Com o advento do iluminismo, há uma ascensão do antropocentrismo (crença de que o homem deve ser mais valorizado, em relação à religião), e, com isso, a concepção de Estado moderno passa a ser desvinculada dos assuntos ditos religiosos. O homem passou a entender questões como governo e religião como sendo coisas separadas. Some-se a isso os fluxos migratórios na Europa, na América e no resto do mundo, e, gradualmente, o mundo inteiro passou a ter crentes de várias religiões em seus espaços territoriais – e até mesmo agnósticos.
O constitucionalismo moderno pressupõe que, entre as liberdades do homem, existem os direitos de primeira geração: aqueles que implicam um não-fazer do Estado. E uma destas liberdades é a liberdade religiosa, a liberdade de credo – pois não envolve somente a liberdade de acreditar em qualquer religião –, mas também a de ser agnóstico, ou seja, não acreditar em nenhuma delas.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o constituinte originário buscou assegurar a liberdade de religião, no sentido de manter o Estado distante de impor impostos que pudessem embaraçar o exercício de qualquer crença religiosa. Isso não se aplica à imposição de outros tributos como taxas, contribuições diversas (sociais, ou de intervenção no domínio econômico) e contribuições de melhoria – que são expressões de menor poder interventivo do Estado, via de regra.
Há autores que inclusive apontam que o constituinte originário, ao proibir que os entes federados instituam impostos sobre os templos religiosos – disseram menos do que queriam dizer. Essa ideia se baseia na distinção (não expressa no texto constitucional) entre templo (o prédio, físico) e instituição religiosa (expressão que abrange muito mais do que somente o espaço físico onde se pratica o culto). Se a imunidade fosse tão somente restrita ao templo, ela somente impediria que incidissem impostos sobre a propriedade imobiliária, como IPTU e ITR – não impedindo, por exemplo, a cobrança de impostos de renda sobre oferendas, um ITCMD sobre doações, ou mesmo o ISS sobre a celebração de um casamento.
Desta forma, a proteção constitucional, para ser efetiva, deveria abranger todo o patrimônio, renda e serviços destas entidades, em um conceito muito mais amplo do que somente um local onde o culto é praticado.
É importante também ressaltar que, a despeito de o Brasil não ser um estado confessional, ou seja, não há uma religião oficialmente adotada pelo estado brasileiro, o Brasil declarado na CF/88 não é um estado ateu. A laicidade estatal, compreendida como uma característica dos estados modernos, implica em uma separação dos assuntos religiosos do estado – mas não necessariamente ateísmo.
O texto do preâmbulo da CF/88 traz claras indicações neste sentido: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. “
Desta forma, é possível compreender que a inspiração do constituinte originário está gravada com um teor de teísmo (ou deísmo – a crença em um ser transcendental), em contraposição ao que seria um ateísmo (a ausência desse elemento) – em grande parte devido a uma tradição cristã do colonizador português, entre outros fatores. Entretanto, no art. 5.o, que assegura a igualdade de todos perante a lei e que elenca as garantias necessárias para isso, em seu inciso VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Estes dispositivos demonstram como o estado brasileiro determinou uma opção por não ser um estado de uma religião (confessional), mas um estado de religiões (indo inclusive mais além, pois esta liberdade de crença abrange inclusive o agnosticismo e o ateísmo), sem esquecer o elemento religioso tradicional que levou a história do país até o ano de 1988.
Como tais conceitos sempre são bastante amplos, e por esse motivo, discutíveis, ao longo da história recente, a imunidade religiosa foi alvo de questionamentos judiciais, cujas apreciações pela jurisprudência geraram mais contornos interpretativos ao respectivo alcance e limite destas imunidades, como será exposto na próxima parte.
Existem algumas decisões em jurisprudência sobre a imunidade religiosa. Entre elas, a mais clássica é a resposta do Supremo Tribunal Federal (STF) a uma ação que exigia a retirada de crucifixos de estabelecimentos públicos, sob a alegação de o Brasil ser um país laico, o que, no entender dos impetrantes, tornaria inadmissível a existência de tais símbolos religiosos. A esse pleito o STF simplesmente respondeu que “estado laico não significa estado ateu”, o que demonstrou muito bem a distinção entre os dois conceitos.
Outras decisões estão alicerçadas em uma tese que o STF aplica em suas análises sobre imunidade – a de que a imunidade religiosa deve ser analisada sob um espectro amplo e finalístico, ou seja, deve ser observado não somente o texto na literalidade, mas as finalidades essenciais destas instituições. Uma desta decisão que invocou essa tese foi sobre se ao imóvel alugado a terceiros persiste a imunidade ao IPTU. De acordo com a exegese do STF, sim, o que deu origem à Súmula Vinculante STF 52: “Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas.” Desta forma, independentemente de quem seja o locatário, neste caso, o que se deve observar, em síntese, é se a renda oriunda da locação não é de fato empregada nas atividades essenciais da instituição religiosa. Ressalte-se que o pressuposto admitido pelos tribunais superiores é de que os recursos são de fato aplicados em suas atividades essenciais, ficando o ônus da prova a cargo da administração pública.
Outra decisão do Supremo, mais anterior à esta, foi sobre um caso em que se questionou se uma entidade religiosa gozaria de imunidade de IPTU sobre um cemitério da instituição religiosa, no caso, uma igreja anglicana, ao que o STF entendeu que sim, desde que tal cemitério fosse uma extensão da entidade religiosa (normalmente, tal cemitério seria de utilização de fiéis daquela determinada instituição). O conceito de extensão que se observa neste caso não é física, contígua, mas finalística, de finalidade da existência deste cemitério.
Em um julgado interessante, uma empresa propôs uma ação de despejo pelo não pagamento de aluguel de seu imóvel por uma certa igreja. Como a igreja em questão possuía apenas um imóvel apto a para a penhora, a empresa solicitou a penhora das rendas auferidas pela igreja, até a quitação dos valores devidos. A igreja contestou judicialmente a pretensão, buscando a impenhorabilidade das rendas do imóvel, já que consideradas imunes aos impostos. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), embora reconhecendo a imunidade religiosa sobre os impostos nesta jurisprudência, não estendeu este entendimento ao contrato de locação, compreendendo ser lícita a penhorabilidade das rendas eclesiásticas, até a satisfação da obrigação, desde que não inviabilize a atividade religiosa.
Houve também o questionamento realizado por um município, que, ao verificar a compra de um terreno por uma igreja, entendeu que poderia lançar ITBI, pois sua tese era a de que a imunidade somente se verificaria quando da construção de um templo no terreno baldio discutido. Essa tese foi recusada pelo STJ, sob o entendimento de que a presunção relativa do atendimento aos requisitos da imunidade está com a igreja em questão, cabendo ao município comprovar o desvio de finalidade, caso porventura houvesse.
Uma questão discutida nos tribunais superiores também foi a da natureza da maçonaria, se ela seria ou não uma religião, para verificar se a mesma seria imune ao IPTU. Em âmbito de repercussão geral, em seu registro de jurisprudência, o egrégio tribunal entendeu que a maçonaria é uma ideologia, e não uma religião, de forma que a maçonaria não está incluída no conceito de instituição religiosa, e portanto, não é imune a impostos, ou seja, neste caso não caberia aplicar a imunidade religiosa.
O conceito de imunidade demonstra, de forma geral, uma limitação ao poder de tributar do estado. A imunidade dos templos de qualquer culto entra nesse contexto como uma garantia para a liberdade de crença, em uma concepção que inicialmente visava assegurar aos cidadãos que eles não seriam perseguidos pelo estado, pelo poder religioso, ou por uma síntese dos dois (como até os dias atuais ocorre em alguns estados confessionais).
Com o passar dos anos, torna-se um assunto mais discutido, à medida que novos elementos são adicionados sobre os limites desta imunidade, como a propriedade de imóveis, a gestão de fundos, a prestação de serviços ou mesmo atividades econômicas vão sendo incorporadas a estas instituições. As atividades assistenciais da igreja gradualmente vão absorvendo fundos e recursos que tornam o custeio de atividades assistenciais cada vez mais complexo, em virtude da necessidade da continuidade destas atividades, que englobam assistência social, asilos, hospitais, enfim, atividades que colocam em prática as obras de caridade ou filantropia das igrejas.
Com isso, torna-se importante diversificar atividades, pois não é possível nem desejável sobreviver somente com doações. A necessidade de gestão sobre tais recursos sempre exige das instituições que elas exerçam suas atividades como associações civis (como organizações de assistência social em geral), participando da gestão de recursos privados (como modernos fundos de pensão), ou mesmo trabalhando através do exercício de uma atividade econômica nos moldes privados. A análise da correlação entre as atividades exercidas e suas finalidades essenciais permanece imprescindível para determinar, de forma assertiva, se o beneplácito da imunidade religiosa continua válido, em cada caso concreto – e quando a constituição não oferece detalhamento suficiente para delinear os limites desta imunidade religiosa a impostos, cabe aos tribunais superiores, através de sua jurisprudência, esboçar definições mais claras.
Ricardo Pereira de Oliveira
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