A cegueira deliberada é uma construção da Jurisprudência que surgiu na Inglaterra e foi, posteriormente, desenvolvida nos Estados Unidos da América e a partir de lá difundida para vários países. O instituto permite a responsabilização penal do indivíduo que, ao contribuir para uma conduta delitiva, coloca-se intencionalmente em situação de ignorância para evitar o conhecimento e, assim, a sua punição. Assim, é possível que se imponha pena ao sujeito ativo que se coloca em situação de ignorância para evitar a sanção penal, já que ele teria se mantido em cegueira deliberada.
É a provocação intencional de uma situação de erro de tipo, com deliberada atitude para evitar o conhecimento sobre os fatos que são elementares do crime.
Sua relevância para o Direito Penal brasileiro deriva de sua utilização em casos emblemáticos, pelo Poder Judiciário, para a configuração da conduta como dolosa e consequente condenação por crimes, especialmente de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Até então, não havia muita pesquisa doutrinária sobre o tema no Brasil.
Com o instituto, caso o agente se envolva no ocultamento de bens derivados de prática de crime antecedente, mesmo que ignore sua origem, seria possível responsabilizá-lo penalmente, com base no instituto da cegueira deliberada. Entende-se configurada a imputação subjetiva (dolosa) com base na conduta do indivíduo que, deliberadamente, evita o conhecimento sobre as circunstâncias ilícitas em que atua para conseguir evitar a sua responsabilização penal.
Como o conhecimento é elemento do dolo, o agente age de modo a evitar saber, por exemplo, o que há no porta-malas do carro que foi contratado para transportar, evitando a responsabilidade penal. Isto porque o princípio da culpabilidade veda a responsabilidade objetiva e nem todo crime tem modalidade culposa. Vale lembrar que a culpa stricto sensu, que abrange a chamada culpa inconsciente, é excepcional no sistema jurídico brasileiro, só sendo possível a punição por modalidade culposa do delito se houver expressa previsão legal.
Origens na Inglaterra e nos EUA
O instituto surgiu, no common law, como construção jurisprudencial, conhecida pelos seguintes termos:
_willful blindness (cegueira deliberada);
_conscious avoidance doctrine (“teoria” da evitação da consciência);
_ostrich instructions doctrine (“teoria” das instruções de avestruz).
O termo “Doctrine” não equivale à teoria, mas, para o propósito de tradução, pode-se pensar em “teoria” como termo amplo, usado para uma teorização advinda do Judiciário, já que a palavra não significa apenas construção acadêmica.
Sua origem, na Inglaterra, costuma ser apontada no Caso Sleep[1], em que foi julgado um comerciante acusado de embarcar barris de parafusos com o símbolo de uma flecha, próprio das Forças Armadas, o que implicava em comércio de bem público. Sua conduta, assim, configuraria o crime de apropriação de bem pública. Sleep alegou não saber da marca da Coroa nos parafusos, apesar de ter admitido ter sido ele mesmo quem os colocara nos barris. Foi condenado pelo júri. Apelou e foi absolvido. Nos votos da posição minoritária, no julgamento da sua apelação, os julgadores que mantinham a condenação entendiam que o comerciante havia agido com os olhos voluntariosa e deliberadamente fechados à verdade, o que equivaleria ao conhecimento e permitiria a sua condenação.
Vale destacar, brevemente, que no direito inglês, há um sistema mais aberto de responsabilização criminal, já que o elemento subjetivo no sistema, de base costumeira, exige a demonstração do conceito de mens rea, que equivaleria a uma ideia de “mente criminosa”[2]. O termo foi retirado de uma expressão em latim que significa o seguinte: a ação não faz ninguém culpável caso a mente não seja culpada.
Para que haja a configuração de um crime no common law, é necessário que haja:
_actus reus (a conduta que se amolda à previsão do crimes)
_mens rea (o elemento subjetivo).
A cegueira deliberada foi, posteriormente, levada aos EUA, onde se desenvolveu e foi difundida para vários outros países. Apesar de nos EUA também o elemento subjetivo do delito ser tradicionalmente baseado na mens rea, esse sistema foi parcialmente substituído com a adoção do Model Penal Code (Código Penal Modelo), um modelo doutrinário de Código Penal, que foi acolhido pela legislação de alguns dos Estados-Membros. Não foi adotado por todos os Estados, além de não ter sido acolhido na legislação federal dos EUA. De todo modo se tornou referência, especialmente após ser utilizado como parâmetro pela Suprema Corte.
Com o Código Penal Modelo, buscou-se substituir a indeterminação da ideia de responsabilização pela mens rea, a ideia “mente criminosa”. O referido Código trouxe melhores delineamentos ao elemento subjetivo, denominado por lá de culpability, algo parecido com a culpabilidade segundo a teoria psicológica, ou seja, o vínculo psicológico entre o agente e a conduta típica praticada.
Vale lembrar que, para a teoria clássica ou causalista, a culpabilidade consiste no dolo ou na culpa, em uma concepção psicológica da culpabilidade.
Nos termos da compreensão atual, de base finalista, a culpability equivale ao elemento subjetivo da conduta ou imputação subjetiva, o que no Brasil consiste no dolo ou na culpa.
Pelo Código Penal Modelo dos EUA, há possibilidade de responsabilização em quatro graus de elemento subjetivo: quando o agente age intencionalmente (purposely); quando age com conhecimento (knowingly); quando age conscientemente com desconsideração de um risco substancial e considerável, sem se preocupar com as consequências (recklessly); e, por fim, se age com consciência de um risco substancial e injustificável, demonstrando uma negligência em relação a como uma pessoa razoável agiria em tais circunstâncias (negligently).
De forma resumida, seriam os elementos subjetivos extraídos do Código Penal Modelo dos EUA:
• Purpose: o agente tem consciência objetiva da sua conduta, além de ciência, crença ou esperança de existência em relação às circunstâncias concomitantes.
• Knowledge: a quase certeza (o agente atua praticamente certo) de que o resultado ocorrerá.
• Recklessness: conduta que desvia do padrão observado por uma pessoa comprometida com a observância das regras legais. Dever de conduta.
• Negligence: dever de cuidado que deve ser observado por uma pessoa razoável. Punição excepcional, o agente deveria ter ciência do risco, mas não o percebe.
A breve explicação, que introduz um assunto complexo, é para demonstração de que o sistema norte-americano de demonstração do elemento subjetivo é diferente do brasileiro, em que o crime pode ser doloso – quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo – ou culposo – quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. A punição por culpa, no Brasil, é excepcional e depende de expressa previsão legal, como determina o artigo 18 do Código Penal, em seu parágrafo único.
Aponta-se o caso Spurr como primeiro em que se aplicou a cegueira deliberada nos EUA. Trata-se de julgamento de um caso de emissão de uma espécie de cheque “garantido” pelo banco, apesar de Spurr, funcionário da instituição bancária, não ter conferido se havia saldo na conta do cliente. Deste modo, o cheque, com a declaração de fundos pela instituição financeira, foi repassado sem o adequado provisionamento de fundos, possibilitando o prejuízo alheio e configurando, assim, uma infração penal. No processo, o magistrado disse aos jurados que poderiam condenar o réu caso se convencessem convencidos de que Spurr, de forma planejada e deliberada, de má-fé, houvesse decidido fechar os seus olhos, sem questionar os fatos ao seu redor, com o propósito de evitar conhecer. Ou seja, a condenação seria possível se ele provocasse um erro de tipo para se furtar da aplicação da lei penal.e
Robbins[3] destaca que, mesmo que não tenha sido a primeira vez em que o tema foi enfrentado, houve uma sinalização de sua aceitação pela Suprema Corte. A cegueira poderia ser utilizada para condenação, preenchendo o requisito do conhecimento pelo agente, ainda que, no caso concreto, sua conclusão tenha sido pela violação do direito de defesa. Lucchesi, por sua vez, entende que o precedente apenas mencionou a cegueira deliberada [4].
O instituto foi sendo adotado em vários precedentes e, assim, os seus requisitos foram discutidos e modificados, com aperfeiçoamento e melhor delimitação da denominada cegueira deliberada.
Outro caso importante foi o Jewell, acusado de tráfico de drogas. Alegou que, em uma viagem, conheceu um homem que lhe ofereceu drogas, tendo ele recusado. Posteriormente, o mesmo homem lhe contratou para transportar um carro mediante pagamento. Jewell afirmou ter feito a vistoria no caso e não ter encontrado nada de ilícito, mas percebeu uma área fechada no porta-malas e, mesmo assim, deu-se por satisfeito com sua inspeção superficial. A instrução dada aos jurados, pelo juiz do caso, foi de ser possível condenação o réu, ainda que ele não estivesse convencido da presença das drogas, mas tivesse agido em deliberada cegueira.
Seria possível aos jurados considerá-lo culpado, portanto, se a acusação tivesse conseguido demonstrar que a ignorância quanto à droga foi resultado de seu propósito consciente de desprezar a natureza daquilo que estava dentro do veículo, com o propósito de evitar conhecer a verdade. Assim, a cegueira deliberada seria suficiente para a sua condenação criminal.
Da obra de Lucchesi, pode ser encontrada uma pesquisa sobre as instruções aos jurados, editadas pelos Circuitos Federais, equiparáveis aos nossos Tribunais Regionais Federais, para serem usadas pelos juízes. Da análise são encontrados pontos comuns[5]. Os requisitos, segundo a pesquisa, seriam:
• a ciência da elevada probabilidade de existência de fato ou circunstância que seja elementar para a conduta criminosa;
• a conduta do agente (intencional ou deliberada) realizada para se manter em erro, para evitar referido conhecimento.
A jurisprudência brasileira e a cegueira deliberada
A primeira aplicação no Brasil é vinculada, pela doutrina, à sentença proferida no caso de furto ao Banco Central de Fortaleza[6]. Após o grande delito patrimonial, conhecido como o maior em valor obtido pelos criminosos já ocorrido no país [7], os agentes tiveram a dificuldade de lidar com uma quantidade imensa de cédulas de 50 reais. Alguns responsáveis pelo delito foram até uma concessionária e comparam vários carros, à vista e em dinheiro vivo, além de deixarem já um crédito para compra posterior de veículos. O pagamento foi todo com notas de 50 reais.
Os comerciantes foram condenados por lavagem de dinheiro, por terem vendido carros aos criminosos, com recebimento de dinheiro advindo de furto. A sentença considerou que agiram de forma intencional com a finalidade de se manterem em ignorância sobre a origem dos valores. Teriam, assim, praticado o crime de lavagem de dinheiro, que, no Brasil, só tem modalidade dolosa. Os réus foram absolvidos pelo TRF5, que não encampou a teoria adotada no primeiro grau de jurisdição.
Houve, posteriormente, sua menção no caso Mensalão, mais precisamente no voto da Ministra Rosa Weber. Foram mencionados, como requisitos da punição do agente por cegueira deliberada:
_ que ele esteja ciente da probabilidade da origem ilícita dos valores ou bens;
_ que sua conduta seja indiferente quanto à ciência dessa elevada probabilidade;
_ que ele opte, de forma deliberada, por permanecer ignorante a respeito dos fatos, em sendo possível a alternativa.
Houve sua acolhida também em julgados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, inclusive em julgados envolvendo a Operação Lava Jato, pelo Juízo da 13ª Vara Federal do Paraná. O caso pioneiro do TRF4 teria sido um julgamento de crime de contrabando de cigarros, com a citação dos mesmos requisitos trazidos no Caso Mensalão.
Críticas sobre a aplicação da teoria no Brasil
O professor Lucchesi faz uma comparação entre os requisitos da cegueira deliberada que prevalece na Justiça Federal dos EUA e, quanto à lavagem de dinheiro, no entendimento do Judiciário brasileiro, especialmente nas condições estabelecidas no voto da Ministra Weber e repetidas em julgados do TRF4:
EUA | Brasil |
O agente tem ciência da elevada probabilidade de existência de uma circunstância ou fato elementar do delito. | O agente tem ciência da elevada probabilidade de que os bens envolvidos tinham origem delituosa. |
O agente toma medidas deliberadamente voltadas a evitar comprovar a existência do fato ou da circunstância. | O agente age de forma indiferente quanto à ciência dessa elevada probabilidade. |
O agente não acredita na existência do fato ou da circunstância. | O agente escolhe deliberadamente manter-se ignorante a respeito dos fatos, em sendo possível a alternativa. |
O que se nota é que, na transposição da teoria dos EUA, os seus requisitos foram modificados parcialmente, não tendo havido fidelidade ao que prevalece na instrução dos Tribunais Federais estadunidenses. Lá, existe a unless provision, que determina que não se pode condenar o réu se ele, à época da conduta, não acreditava na existência de fato ou circunstância necessários à configuração da infração penal.
Como crítica, pode-se concluir que houve transposição de uma teoria de um sistema baseado no costume e em precedentes, a família common law, para o Brasil, cuja base é de civil law, ainda que haja a importação de institutos que, para alguns, desnaturam o sistema, como o Brasil já importado elementos próximos ao common law, como as súmulas vinculantes e a negociação no Direito Penal (proximidade entre plea bargain e acordo de não persecução penal).
No sistema brasileiro, a legalidade tem uma importância garantidora maior, exigindo a taxatividade na previsão típica de forma anterior, por meio de lei formal, com instituição das penas. Não se admitem leis vagas e, além disso, existe expressa definição de dolo e culpa no artigo 18 do Código Penal. Além disso, a falta de conhecimento afasta a punição por dolo em razão do regramento do erro de tipo, previsto no artigo 20 do Estatuto Penal.
Deste modo, ou se admitiria o dolo eventual, cujos contornos não são muito precisos na doutrina brasileira, considerando-se que o agente, em situação de cegueira deliberada, agiu com risco de causar o resultado, ou não se poderia punir o agente a título de dolo. A conduta simplesmente descuidada pode gerar a responsabilização por culpa, mas apenas naqueles delitos em que há expressa previsão legal, o que não é o caso, por exemplo, de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. É o que determina o parágrafo único do artigo 18 do CP.
Conclusão
Vistas as origens e as críticas ao instituto, vale ressaltar que o seu conhecimento pode ser importante para concursos de maior aprofundamento do Direito Penal, ainda que de forma breve e inicial. O estudo para concursos é denso, embora não permita o aprofundamento acadêmico em cada tema, em virtude da extensão do conteúdo programático.
Conhecer a origem, os julgados brasileiros e os delineamentos do instituto da cegueira deliberada é um importante diferencial, especialmente em virtude do crescimento da adoção da teoria na jurisprudência nacional. O objetivo foi apresentar, de forma breve e concisa, a cegueira deliberada que fundamenta a punição do agente, por dolo, quando ele deliberadamente se coloca em posição de ignorância (para forçar um erro de tipo) – uma questão polêmica e que abrange uma possível lacuna da lei, geradora de impunidade.
Pode-se argumentar tanto pela construção jurisprudencial de punição, como no Caso Mensalão e na Operação Lava Jato, pelos argumentos usados pela Corte, ou concluir pela necessidade de previsão legislativa para possibilitar a responsabilização válida em nosso sistema, em decorrência dos princípios que orientam o Direito Penal, como a legalidade.
A favor da aplicação da teoria, há doutrinadores que defendem que o agente que se coloca em erro de tipo de forma intencional não pode sair impune, já que deliberadamente evitou tomar conhecimento da situação para evitar a aplicação da lei penal. Agiria, para alguns, em dolo eventual, assumindo o risco do resultado.
Outros autores entendem que, se a situação está abrangida pelo dolo eventual, o recurso à cegueira deliberada é desnecessário. Por outro lado, se não se pode enquadrar em dolo eventual, ou o caso é culposo e se pune apenas se a lei previr (o que não ocorre em lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, por exemplo), ou faltam provas a demonstrar a imputação subjetiva, questão de direito processual e que leve à absolvição.
[1] ROBBINS, Ira P. The Ostrich Instruction: deliberate ignorance as a criminal mens rea. Journal of Criminal Law and Criminology, v. 81, n. 2, 1990, p. 231-234. Disponível em: [https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2784406]. Acesso em: 23.05.2020.
[2] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo da culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 68-69.
[3] ROBBINS, Ira P. Ibidem, p. 198.
[4] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Ibidem, p. 92.
[5] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Ibidem, p. 118-119.
[6] Processo 2005.81.00.014586-0, que tramitou na 11ª Vara Federal da SJCE
[7] https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-foi-o-maior-assalto-realizado-no-brasil/
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